domingo, fevereiro 07, 2010

No meio do deserto australiano [+12 anos].- XFC



    Aquela noite houve uma terrível tormenta de areia naquela parte do deserto ocidental. Os relâmpagos deixavam-se ver através das nuvens de pó.
    Nenhum dos habitantes da aldeia de Kingston abriu as janelas durante toda a noite para ver qual a força da tormenta. Não era preciso.
    Durante toda a noite, o vento zoou sem parar e os relâmpagos caíram ciclicamente. Era, provavelmente, a pior tormenta seca dos últimos sessenta ou setenta anos naquela parte do deserto.
    Aos poucos, enquanto saía o sol, a tormenta diluía-se como um pedaço de açúcar num copo de água. O disco vermelho que assomava pelo horizonte deixou ver o resultado de toda uma noite de violência da natureza. As dunas estavam todas deslocadas, a barreira de rochas com que os habitantes de Kingston costumavam proteger-se das tormentas de areia estava quase oculta por um lado, mas felizmente tinha aguentado. 
    Os primeiros habitantes da aldeia saíram de manhã para fazer a sua vida rotineira. E então encontraram aquilo.
    Aquilo, sim.
    Tratava-se da última coisa que ninguém encontraria no meio do deserto da Austrália, a uma distância de quinhentos quilómetros da costa.
    Era um barco. Um enorme e imenso barco que ficava no meio do planalto que ficava a meio quilómetro da aldeia. Via-se perfeitamente desde praticamente qualquer morada da aldeia, na zona mais árida de toda a região.
    Pouco a pouco os habitantes de Kingston conheceram o mistério que se alçava a poucos metros das suas casas. No início ninguém quis acostar-se, tinham medo. Naquela região as pessoas acreditavam em mitos e lendas ancestrais.
    Também não podiam ligar para as autoridades, porque por causa da tormenta a linha telefónica ficara interrompida. Provavelmente não seria reparada em duas semanas, até as autoridades da capital verificarem que não podiam contatar com o presidente da câmara municipal.
    Mas por cima do medo está a curiosidade. Os habitantes de aldeia começaram a se achegar do barco, mas sempre mantendo uma distância prudente, sem chegar a estar em contato com ele. Aparentemente estava abandonado e ninguém tinha coisas mais importantes que fazer naquele dia do que ter alguma história interessante para contar aos seus netos, porque de fato, em Kingston nunca acontecia nada, nada para além das tormentas de areia que obrigavam os cidadãos a ficar fechados em suas casas.
    Puderam comprovar que se tratava de um barco de ferro, mas não era um barco demasiado atual. Pelo aspeto – era um juízo de um vizinho que cinquenta anos atrás tinha trabalhado no cais de Melbourne –, parecia uma nave do início do século XX, ou mesmo mais antiga.
    A partir daquele momento, o barco concentrou absolutamente o interesse de toda a aldeia, que contava uns duzentos habitantes. Todos eles falavam de como um barco de cem anos de antiguidade ou mais podia ter chegado até aquela planície tão afastada do mar.
    Era um grande mistério. E logo alguém comentou aos seus vizinhos:
    – Se descobrem que temos este barco aqui, isto estará cheio de turistas...
    Isso era bom ou mau?
    Durante umas horas, os vizinhos discutiram sobre a questão em assembleia,  esquecendo por um tempinho a presença do barco. A aldeia estava dividida. Uma metade queria que a aparição do barco fosse um segredo, enquanto a outra metade queria que todo o país soubesse o que lá tinha acontecido, porque precisamente o turismo daria nova vida à aldeia.
    – Eu não quero turistas – dizia um dos mais anciãos da aldeia–. Eu moro aqui muito feliz sem ver pessoas estranhas que quebram a calma do local, com câmaras por toda a parte e perguntando coisas estúpidas.
    – Você deveria ser um bocadinho mais moderno –replicaram ao velhote–. Esta aldeia vai morrer porque não tem nada de interessante que oferecer. Se pelo menos tivéssemos turismo, poderíamos ter perspectivas de futuro, negócios, está a perceber?
    Os habitantes da aldeia discutiram durante um dia, mas quando votaram, ganharam aqueles que não queriam que as pessoas de fora conhecessem a existência daquele estranho barco.
    Mas antes de poderem fazer nada os vizinhos, chegaram à aldeia os funcionários enviados pelo governo para comprovar que a aldeia ainda existia e não desaparecera sob a areia após a tormenta.
    Pronto, e os funcionários descobriram também o barco.
    Como iam explicar os vizinhos da aldeia que tinham a poucos metros da povoação um barco de cem anos de antiguidade no meio do deserto?
    Carnaval. A resposta que deram os vizinhos foi que estavam a preparar o carnaval.
    Os vizinhos explicaram aos funcionários que aquele barco era uma tradição do carnaval que estavam a recuperar. Inventaram uma complexa história acerca de antigas tradições que os primitivos habitantes da aldeia trouxeram do Brasil, não porque eles fossem brasileiros, mas porque chegaram da Inglaterra fazendo uma paragem técnica no Rio do Janeiro e de lá trouxeram o costume do carnaval.
    Os funcionários ficaram pasmados, mas não podiam dizer nada, porque eram um bocadinho ignorantes e não tinham nem tempo, nem vontade de verificar qual era a história real da aldeia de Kingston.
    Mas o mistério ficava lá. E eles ainda não tinham a coragem de se achegar até o mesmo barco, para tocá-lo, para comprovar qual era o seu estado.
    Durante todo o dia, e mesmo durante quase toda a noite, sempre havia vizinhos a olhar para o barco na distância. Assim correram duas semanas sem que houvesse qualquer novidade arredor daquele misterioso barco.
    Até o dia em que um dos cães da aldeia sim chegou até o pé do barco. Vários vizinhos contemplavam a cena com muito interesse. Pouco a pouco o resto dos vizinhos foram concentrando-se para eles também ser testemunhas do que estava a acontecer.
    O cão, alheio de tudo ao interesse dos humanos, chegou até o mesmo barco. E quando esteve lá, fez o que faria qualquer cão nesse caso: xixi.
    O cão fez xixi no casco do barco.
    E não aconteceu nada. O cão voltou para a aldeia a remexer o rabinho muito contente.
    Graças à coragem do cão, os vizinhos começaram a se aproximar do barco. De fato, toda a aldeia foi até o barco naquela manhã de domingo, quando as pessoas não tinham nada que fazer. Até os dois bares da aldeia fecharam porque não tinham clientes e parecia que aquele era um momento histórico que ninguém queria perder.
    O presidente da câmara foi o primeiro que chegou. Ele tinha que ser o exemplo para os seus vizinhos. Na realidade estava morto de medo, mas não ia reconhecê-lo, porque, aliás, aquilo podia custar-lhe não repetir no cargo nas próximas eleições.
    Lentamente, os vizinhos todos colocaram-se arredor do estranho barco em silêncio. Ninguém ousava dizer uma palavra, como se aquele fosse um momento mágico.
    Aqueles que pensavam que se calhar se poderia recuperar a ideia de converter a aldeia de Kingston num destino turístico estavam convencidos de que naquela altura sim convenceriam os vizinhos que tinham dúvidas sobre a questão. Mesmo o presidente da câmara começava a ver o plano com bons olhos, embora fosse cético no início, mas agora via aquilo como uma ocasião para ter uma carreira política além daquela aldeia perdida.
    Todos contemplavam aquele casco estranho, tão bem conservado durante décadas, talvez durante mais dum século, que até então tinha estado enterrado baixo a areia daquele imenso deserto.
    E foi o presidente da câmara que estendeu a mão para tocar o barco. Queria averiguar como seria o tacto daquele metal avermelhado
    Justo naquele momento, quando os dedos do presidente da câmara tocavam o casco, eles afundiram nele, no casco...
    – Areia... –conseguiu dizer o presidente da câmara, enquanto uns grãos fugiam por baixo dos seus dedos.
    Foi uma coisa imprevisível. Assim que o presidente introduziu a mão no casco, aquela massa de areia começou a desmoronar-se lentamente, desde o topo, como se fosse um castelo de areia, mas dum tamanho gigante.
    Os habitantes da aldeia tiveram tempo de correr de volta para a aldeia. A queda daquele monte de areia foi lento, mas o barco foi-se desfazendo, caindo para o chão, até se converter numa montanha de areia. Desapareceram todos os pormenores do barco, a torre de controlo, as antenas, os cabos, absolutamente todo. Em questão de cinco minutos ficou tudo reduzido a uma montanha de areia, a uma duna amorfa.
    Pouco depois, soprou o vento. Não era uma tormenta, mas um ventinho forte que em poucas horas deixou a planície como estava duas semanas atrás, antes da tormenta que levantou aquele barco.
    Os vizinhos não podiam acreditar aquilo. Apenas umas fotos demonstravam que, com efeito, diante da sua aldeia tinha havido um barco no meio do deserto, esculpido pelo próprio vento, feito todo ele de areia...

© Xavier Frías Conde
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