sexta-feira, dezembro 03, 2010

O pinguim insatisfeito [+10 anos].- XFC

    Sylvia James deslocou-se a Alaska para conhecer uns parentes.
     O seu pai era daquela terra fria, embora ela tivesse nascido em Nevada.
     Um bom contraste, porque em Nevada o sol permitia fazer ovos estrelados acima de uma pedra às doze do meiodia, enquanto em Alaska era possível poupar o dinheiro de um frigorífico e bastava deixar as bebidas à porta de casa para estarem frias, mas convinha ter cuidado que não vinhesse um urso e levasse as cervejas para a cova, coisa que podia acontecer.
      A Sylvia viajou até Nome, a capital de Alaska.
     A coitada dela escolheu o inverno, que não era um bom período para visitar aquelas terras, mas… era quando tinha algo de tempo para o fazer e quando os bilhetes do avião eram mais baratos.
     Portanto, lá foi.
     Mas a família dela não morava em Nome.
     Oxalá.
     Moravam numa aldeia perdida muito mais para o norte.
     A viagem foi um horror, dentro de um veículo muito estranho que podia mover-se pela neve.
     Era uma espécie de táxi que conduzia um homem que só usava três palavras quando lhe faziam perguntas:      "Hmm", "Grr", "Pff".
     Tinham uma certa lógica, mas ninguém sabia muito bem o que significavam.
     É por isso que ele era conhecido como Mr Threewords (isto é, Senhor Três-Palavras).
     Porém, Mr Threewords era um grande condutor.
     Felizmente conduziu a Sylvia até aquela aldeia remota onde morava a sua família.
    O único que disse depois de descarregar a equipagem no chão coberto de neve foi "hmm", que talvez significava "adeus, que tenha um bom dia", ou se calhar: "ainda bem que chegamos, com licença".
     Qualquer coisa era possível com aquele homem.



* * *


     A Sylvia foi muito bem acolhida pelos parentes da Alaska. Ficaria em casa da tia Shooz, a irmã do seu pai.
     Era uma mulher muito carinhosa, mas infelizmente cheirava sempre a rum.
     Bom, de facto toda a família cheirava a rum.
     A Sylvia começou a conhecer os arredores da aldeia com a Nicole, a sua prima. Tinham quase a mesma idade.
     A Nicole tinha um costume estranho: passava o tempo a fumar num cachimbo que, segundo dizia ela, estava feito de osso de baleia.
     Portanto, a Nicole tinha um cheiro muito engraçado, onde o rum, o tabaco e outros aromas impossíveis de determinar se misturavam. Porém, o resultado não era desagradável.
     A Nicole mostrou à Sylvia aquela terra aparentemente vazia, quase sempre coberta de neve e gelo.
     A rapariga de Nevada pensava que não gostaria de viver ali, com tanto frio. Não encontrava nada, nada, nada interessante naquelas terras brancas, embora lá estivesse o mar.
     Nada, nada?
    Até aquele dia em que a Sylvia descobriu junto com a sua prima aquele bebê de pinguim que estava abandonado.



* * *


     Era um bebê, com efeito.
     A mãe não estava à vista. Com certeza qualquer coisa grave tinha-lhe acontecido para o abandonar assim.
     A Sylvia sentiu o impulso de ir recolher o penguim, que estava lá sozinho, a tremer de frio.
     Mas os pinguins tremem de frio?
     A Nicole não disse nada, porque ela também sentia pena pelo pinguinzinho abandonado. Ela sabia que, se ficava lá sozinho, morreria logo.
     Portanto, levaram o pinguim para casa.
     A tia Shooz não se estranhou muito de encontrar aquele animal lá.
     "É que gosta do rum?", perguntou ela, que queria ajudar também.
     "Acho que não", disse a Sylvia.
     "E leite, gostará do leite?", perguntou a Nicole.
     "Acho que não. É um pássaro e os pássaros não gostam do leite".
     Realmente não sabiam como alimentar aquele animalzinho tão engraçado que olhava para elas todo cheio de curiosidade, vestido tão elegante.
     Porém, nem precisaram procurar nada para o alimentar.
     Ele sozinho, o bebê pinguim, encontrou algo para comer: um bote de feijoada.
     Ninguém poderia ter imaginado que o bebê pinguim gostava dos feijões!



* * *



      O pinguim alimentava-se de feijões com troços de toucinho e crescia.
     Durante a semana seguinte, a Sylvia apenas quis ocupar-se daquele animalzinho que mantinha quente envolvido em cobertores.
     Comia com muito apetite.
     Era tão porreiro o pinguinzinho.
     Decidiu que devia pôr-lhe um nome, porque na realidade já o tinha adotado como animal de estimação.
Depois de muito pensar nisso, decidiu chamá-lo "Beanguin", por gostar dos feijões (beans) e ser um pinguim (penguin); portanto, em português podia ser traduzido como Feijuim.
     Numa tarde, a Sylvia decidiu sair passear com o seu novo animal de estimação.
     Pensou que o Beanguin ou Feijuim gostaria de correr pelo chão coberto daquela capa branca.
     Mas errou.
     Quando o pinguim sentiu aquele frio nos seus pés, fez algo muito esquisito: conseguiu escalar pelo corpo da Sylvia como se fosse um lagarto.
     O Feijuim chegou em menos de dois segundos à cabeça da Sylvia.
     E lá ficou, a olhar para o chão com terror.
     A Sylvia não podia acreditar o que acontecia.
     E a sua prima Nicole, que tinha sido testemunha de tudo, disse:
     "É a primeira vez que vejo um pinguim grimpar como um gato…"
     As duas primas ficaram em silêncio.
     E então a Nicole disse:
     "Já percebi: este pinguim é friorento! Por isso não atura o frio da neve".



* * *


     Podem imaginar a situação?
     A Sylvia estava muito preocupada.
     Chegava o momento da sua partida; devia voltar para Nevada, mas não podia deixar lá o seu adorado pinguim ao cuidado da sua prima.
     Até podia conseguir que o animalzinho começasse a fumar em cachimbo!
     A Sylvia adorava o Feijuim. O Feijuim adorava a Sylvia, não viajava na cabeça de ninguém exceto na dela.
     Tinha que encontrar a forma para levar o pinguim a Nevada.
     "Estás maluca, á prima?", dizia-lhe a Nicole. "Esse animal vai morrer lá de calor".
     "Mas aqui vai morrer de frio", respondia a Sylvia.
     Chegou o dia da partida.
     O senhor Três-Palavras veio recolhê-la para levá-la a Nome, ao aeroporto.
     Então a Sylvia pensou que aquele estranho homem, se calhar, teria qualquer ideia.
     Explicou-lhe a situação do pinguim e como ela gostaria de levá-lo consigo no avião para Nevada, mas que não sabia como.
     Durante toda a conversa, Mr Threewords não disse nem "hmm", nem "grr" nem "pff".
     Quando a rapariga acabou de falar adicionou um som novo, um que não tinha feito nunca antes, mas não havia mais ninguém lá para ouvir; por isso ninguém poderia ter proposto que lhe mudassem o nome para Mr Fourwords (senhor Quatro-Palavras).
     O que ele disse foi "eing".
     E depois fez um gesto com a mão, que podia significar: "vem comigo", ou "traz o pinguim" ou "olha que cheiro tão esquisito há por aqui".
     A Sylvia optou por levar-lhe o pinguim, que estava lá na sua cabeça.


* * *


     Ninguém sabe bem como foi, mas dois depois de a Sylvia chegar a sua casa, chegou um pacote muito grande.
     Tinha aliás um laço muito grande.
     Levava uma nota onde, além do endereço da Sylvia, aparecia uma sinatura que a rapariga reconheceu: "Hmm-Grr-Pff".
     A Sylvia abriu o pacote.
     Lá dentro havia uma gaiola, mas parecia um pequeno quarto de um hotel.
     E claro, quem estava lá?
     O Feijuim!
     A viagem foi muito cómoda para ele, com muitos botes de feijões com toucinho.
     Quando a Sylvia abriu a gaiola, o pinguim saltou para a cabeça da rapariga, mas não era necessário, porque em Nevada não há neve pelo chão.
     Se calhar, vocês estão a se preguntar como pôde viver um pinguim em Nevada.
     Bom, qualquer pinguim teria morto, mas não o Feijuim.
     O Feijuim, como pinguim friorento, adorou Nevada e viveu muito contente com a Sylvia, pois gostava de se deitar na areia e tomar o sol com óculos escuros.
     E acaba assim a história da Sylvia e dos seus animais de estimação, o pinguim Feijuim e o coelho Dionysius, que se cria um tigre e atacava os cães de caça às mordidas…
      Que não vos falei do coelho Dionysius? Desculpem, mas terá que ser noutra ocasião, agora vou jantar.
      Até a próxima.

© Xavier Frias Conde
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