[1]
O xeque Ahmed Al-Bahri estava orgulhoso da sua coleção de camelos.
Tinha mais de quinhentos.
Porém, o seu favorito era Língua de Trapo.
Língua de Trapo era um camelo muito especial que sabia como passar a sua língua pela cabeça do seu amo e fazer-lhe cócegas.
E como podem imaginar, chamavam-lhe Língua de Trapo porque tinha uma língua que parecia um trapo, mas o xeque Ahmed Al-Bahri gostava imenso dela.
E naquela sexta-feira, quando o xeque quis ir montar o seu camelo preferido pelas dunas do deserto, descobriu algo terrível.
O seu camelo tinha três corcovas.
Pode ser que errasse ao contar.
— Uma, duas, três… —voltou a contar.
O xeque estava muito confuso.
Chamou um dos seus moços:
— Conta as corcovas do meu camelo.
O moço deu-se conta que, com efeito, o camelo tinha três corcovas.
Mas não ia dizer nada, porque não tinha a intenção de contrariar o xeque.
— Quantas é que tem? —insistiu o xeque.
O moço balbuciou:
— Três…
— Eu tinha razão —largou o xeque.
E saiu às carreiras dos estábulos para ir procurar o veterinário.
[2]
Meia hora depois já tinha voltado com o veterinário, que ainda levava o seu pijama de hipopótamos dançarinos.
O coitado dele tiraram-no da cama.
— Então, ó doutor, como é possível que o meu Língua de Trapo tenha três corcovas em vez de duas?
Com efeito, o Língua de Trapo, segundo confirmou o doutor, tinha três corcovas.
Aquele era um caso único, porque nunca se tinha detetado um camelo com três corcovas.
Seria fantástico poder levá-lo a um congresso de veterinários do deserto e mostrá-lo lá como uma criatura única.
Porém, o doutor Nabil Abu-Karim não queria chatear o xeque.
Poderia custar-lhe a cabeça.
Mas ele fazia ideia do que podia acontecer com o camelo.
Por isso, pediu ao xeque que lhe contasse como era a vida normal de Língua de Trapo.
O cheque, todo orgulhoso, explicou:
— Eu adoro este animal. Trato-o como se fosse o meu próprio filho.
Aquilo explicava muitas coisas.
Soube o veterinário que o camelo era alimentado com coisas tão esquisitas como caviar, ostras e maracujá.
[3]
— Tenho que lhe fazer uma análise de sangue —pediu com temor o veterinário.
O xeque pôs-se todo sério:
— Fá-la, mas se o camelo sofrer por isso, deitarei a tua cabeça aos crocodilos…
O veterinário pensou que os crocodilos talvez jogariam futebol com a sua cabeça.
Mas, mesmo assim, fez a análise de sangue ao camelo.
E os resultados foram bem estranhos.
Além de colesterol, o camelo apresentava doenças próprias dos humanos no seu sangue.
Porém, o doutor Nabil Abu-Karim já sabia o que acontecia com Língua de Trapo.
Quis ainda confirmar algum pormenor:
— Ó meu comendador dos crentes, e quando levais Língua de Trapo a passear convosco, ele vai de carro?
— Pronto, claro que vai de carro. Não te disse que trato Língua de Trapo como se fosse o meu próprio filho?
— Eis o problema…
— Como te atreves? Vais acabar no fundo do mar feito comida para tubarões e piranhas.
O veterinário não ia explicar ao xeque que no mar não há piranhas.
— Comendador dos crentes, quero dizer que o vosso camelo tem uma vida pouco sã, faz muito pouco exercício, nem caminha. Olhai para ele. O que aconteceu —é a minha hipótese—, é que ele não engordou, mas desenvolveu uma terceira corcova. Eis o seu modo de manifestar que está gordo, ó pai dos crentes.
E o xeque acreditou naquelas palavras.
Sim, talvez tinha tratado aquele camelo demasiado bem.
Já eram horas de pô-lo a fazer exercício.
[4]
O próprio xeque também estava muito gordo.
Ele não gostava de fazer exercício e ia a toda a parte de carro.
Mas aquele carro seu era imenso, tanto que podia lá viajar também o seu camelo Língua de Trapo.
O xeque tinha lido na net que a bicicleta era um meio esplêndido para rebaixar gorduras.
Por isso comprou um tandem.
Era muito engraçado ver o xeque mover os pedais na dianteira e Língua de Trapo na traseira.
Coitado camelo, para ele era muito complicado mover os pés naquela estranha bicicleta.
Também não era singelo para o xeque, que não estava costumado a fazer desporto.
Ele não caminhava mais de dez passos seguidos, que para isso tinha uma alcatifa mágica que o levava a toda a parte, mas infelizmente o camelo era muito pesado para ela.
Por isso, tanto o xeque quanto o camelo logo estiveram cobertos de suor.
Suor! Que nojo!
Quando é que o xeque tinha suado a última vez na sua vida?
Nem lembrava, talvez em criança.
E então ia deixar de fazer exercício.
Que chatice de colesterol.
Porém, a mãe do xeque, a xequessa Fátima al-Bahri, a única pessoa que realmente temia nesta terra o xeque, conheceu as intenções do seu filho de abandonar o desporte.
— Se paras de fazer exercício —ameaçou ela—, vais varrer todo o palácio com a vassoura. E pensa-o bem, porque são cinquenta mil metros quadrados...
Aquela ameaça pesou muito, aliás, o xeque sabia que a sua mãe era capaz de cumprir aquela ameaça.
O que pensariam dele depois os seus súbditos?
Ninguém o tomaria a sério.
Mas o pior não era a ameaça.
O pior foi que a partir do dia seguinte, a xequessa, comodamente deitada na alcatifa mágica, controlava que o filho e o seu camelo favorito faziam exercício durante duas horas e meia cada dia e depois iam para a ducha (também o camelo).
Contudo, os resultados foram ótimos.
Depois de duas semanas, as moscas deixaram de ficar retidas pela órbita da barriga do xeque e o camelo já perdera uma corcova: apenas tinha duas!
[5]
O doutor Abu-Karim analisou as mostras das análises do sangue de Língua de Trapo, mas também do xeque, porque realmente não eram muito diferentes.
— Com efeito —afirmou então, vestido com a sua bata branca de doutor—, o vosso nível de colesterol é agora muito inferior.
— Ótimo, ótimo, ótimo! —gritava o xeque todo contente—. Isso significa que já podemos parar de fazer exercício, não é?
O doutor, antes de responder, assegurou-se de que a xequessa estava ali presente para não sofrer a cólera do xeque:
— Ó comendador dos crentes, isso não pode ser...
— Como assim? Vou lançar-te a um vulcão em erupção esta mesma noite!
Felizmente o veterinário sabia que no país havia muitas dunas mas nenhum vulcão.
— Ó, xeque —explicou—, a coisa não é tão simples. Vós estais ainda muito gordo. Como vo-lo explicar? É como se antes tivésseis dois pneus de camião arredor da vossa barriga. Agora apenas tendes um, mas mesmo assim é muito. E quanto ao vosso camelo, bom, acho que não vos disse que na realidade não é um camelo, é um dromedário. Os dromedários têm apenas uma corcova. Portanto, não é normal que tenha mesmo duas, o qual quer dizer que ainda tem um colesterol e uma gordura muito grandes... Têm que continuar com o vosso exercício.
O xeque foi dizer algo feio, mas então a xequessa interveio:
— Filho, obedece o veterinário com cara de sapo ou vou tirar a chinela e vou bater-te com ela no rabo como quando eras menino.
Aquela ameaça era muito pior do que fazê-lo varrer todo o palácio.
Por isso, o xeque limitou-se a perguntar:
— O que é que faremos? Continuamos a montar no tandem?
— Ó, xeque —disse o veterinário—, convém fazerem um desporto mais completo: façam natação.
— Boa ideia —concordou a xequessa—. E já sei como a vão praticar.
O xefe começou a suar, mas não foi pelo exercício, mas pelo medo que lhe causavam aquelas palavras da sua mãe...
[6]
Quando a xequessa tinha ideias, elas podiam ser terríveis.
Naquela altura, ia obrigar o seu filho e Língua de Trapo a atravessar nadando uma distância de duzentos quilómetros.
Ela iria ao seu lado, como sempre montada na alcatifa mágica.
Não serviram para nada os grunhidos do xeque e do camelo quando foram atirados ao mar desde um barco real.
Tiveram que começar a nadar.
De quando em vez, viam nadadeiras de tubarões, mas não tinham certeza se tratava de autênticos esqualos ou se era qualquer trapaça da xequessa para obrigá-los a nadar.
E nadaram, nadaram os duzentos quilómetros.
E não chegaram mais para lá porque encontraram terra.
A xequessa desceu da alcatifa mágica e deu um beijo ao filho.
— Estou muito orgulhosa de ti.
Quando veio o veterinário, nem reconheceu o xeque.
O camelo era, enfim, um dromedário, com uma só corcova e um aspeto muito saudável.
Na realidade, após tanto tempo no mar, acabou desenvolvendo nadadeiras.
Tanto é assim que já Língua de Trapo queria ficar na terra.
Voltou para o mar.
E ali ficou.
O doutor Abu-Karim pôde verificar que a natureza tinha agido sobre a genética do dromedário de uma forma muito particular, até adaptá-lo ao meio marinho.
O dromedário vive agora muito feliz na água.
Já não o chamam Língua de Trapo, mas Língua de Sereio e corre pelo mar acompanhado por alguns cetáceos.
O veterinário pensa que, se calhar, chegará a converter-se numa nova espécie: o dromedário marinho.
Mas essa é já outra história.
© Xavier Frías Conde, 2011
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