sexta-feira, abril 04, 2025

A ALERGIA DA HELENA

 

Às seis da manhã, soou o despertador.

NGUI, NGUI, NGUI, NGUI...

Soava estranho demais, mas era a única forma de a Helena acordar, porque tinha um sonho muito profundo que apenas aquele som conseguia interromper.

— Filha, estás acordada?

Era a voz da Alcione, a mãe, que soava do outro extremo da casa. A Helena olhou para o João, o irmão, que dormia todo tranquilo. Nem o som daquele despertador infernal o tirava do sonho. Ele tinha a sorte de ter aulas de tarde, enquanto a Helena as tinha de manhã, portanto ela era a que sofria a desgraça de acordar cinco dias por semana tão cedo.

A menina foi tomar o pequeno-almoço e depois tocou o asseio.

— Lava-te bem, hein? —lembrou a mãe —. Tens que cheirar bem antes de entrares na sala de aula.

— Muitos dos meus companheiros fedem, mamã. O Carimbolo cada dia cheira diferente.

— Como assim?

— Sei lá como é que ele faz. Um dia cheira a gato morto, outro a sardinhas em lata, outro a lixeiro, outro a...

— Chega — interrompeu a mãe —, não me interessa como é que cheira o Carambelo...

Carimbolo — corrigiu a menina.

— Como for. Vai à casa de banho e prepara-te.

Depois de se pentear bem, a Helena quis ver-se bem no espelho. Estava ótima. Ficou a olhar o seu reflexo durante muitos minutos, gostava de se ver.

— Vens já? — soou a mãe ao longe.

A menina interrompeu a sua atividade e correu para a porta da casa. A mãe ia levá-la à escola.

Até seis horas depois, quando a Helena voltou da escola, mas não parecia a mesma menina que tinha saído da casa de manhã. Coçava os braços com total desespero e, por cima, tinha uns ranhos que pareciam cascatas.

— Filha! O que é que te aconteceu?

Mas a Helena nem tinha tempo de responder, correu para a casa de banho e voltou com um rolo de papel higiénico para limpar os mocos, que caíam sem parar. Os dois braços, aliás, estavam completamente vermelhos por causa das unhas da menina a coçar sem parar.

— Suspeito que isto seja alergia — disse a Alcione, quem, sem hesitar, levou a garota para o médico.

Foram diretas para o hospital, até entraram pelas emergências. Felizmente, havia uma alergóloga disponível.

Assim que a doutora viu a criança, disse para a mãe:

— Coloque-a na padiola.

A doutora nem fez perguntas no início. Observou os sintomas, que eram as cachoeiras que saíam do nariz da Helena e a coça desesperada da menina nos seus próprios braços.

Depois, a doutora pegou no seu carnê e começou o interrogatório, que sabia fazer tão bem como um agente da polícia para um suspeito.

— Têm animal de estimação em casa? 

— Temos.

— Um gato, um cão, um porquinho-da-índia, um coelho, qualquer um com pelo?

— Não, é uma iguana — disse a mãe.

— Que se chama Margarida — acrescentou a Helena sem parar de lhe sair muco pela cascata.

— Então, que plantas há ao redor da vossa casa?

Foram enumerando as variantes que conheciam, que não eram todas, enquanto a doutora tomava notas.

— A menina tem problemas com algum alimento, por exemplo, com leite, com pão?

— Não.

— Então, vamos praticar as provas da alergia. Venham à consulta aqui no hospital daqui a uma semana.

A doutora desenhou uma espécie de tabuleiro no braço da Helena, a qual perguntou com surpresa:

— Por acaso, vamos jogar xadrez no meu braço? Ou três em linha?

— Não, fazemos isto para marcar distintos produtos que podem causar alergia... — explicou a doutora.

— E pode ser que tenha alergia da mamã, ou do papá, ou do João?

— Espero que não...

A Helena abraçou a mãe, não queria que ela fosse a causa da sua alergia, isso sim seria uma desgraça, mas então teve uma ideia:

— Ah, doutora, e não pode ser que tenha alergia à escola? Hoje, quando vim dali, foi que me encontrava tão mal...

— Há pessoas que têm alergia ao giz...

— Mas na minha escola usamos marcadores para o quadro — reconheceu a menina desiludida.

A doutora colocou algum medicamento que aliviasse os sintomas. Para o nariz, foi como se colocassem uma barragem, porque as cataratas cessaram. A Alcione, por acaso, também cortou as unhas da menina para evitar que chegasse até ao osso quando se coçava.

Finalmente, depois de uma semana de espera, a Helena e a sua mãe foram ao hospital para receber os resultados das provas de alergia.

— Isto não tenho nunca visto — disse a doutora. — A menina é alérgica... a si própria. 

— Não pode ser... — deixou escapar a Alcione.

A doutora não parava de dar voltas pela sala de consulta. Nem ela, nem nenhum dos seus colegas tinha visto uma coisa parecida. Só podiam explicar que fosse alérgica a alguma secreção do seu próprio corpo.

— E isso tem cura? — perguntou a mãe.

A doutora e a Alcione começaram a dialogar sobre o que a médica tinha pesquisado. Por enquanto, a Helena foi olhar-se num espelho de corpo inteiro que havia na consulta. Via-se bem, apesar das coceiras nos braços. 

— Mamã — disse a menina, — achas que posso ter um vestido azul para o meu aniversário, com bordos dourados?

Mal a mãe desviou a vista para a menina, esta começou a coçar todo o corpo com desespero e novamente uma cachoeira de ranhos acudiu ao seu nariz, como se a barragem tivesse quebrado.

— Mamãezinhaaaaaa!

A Alcione e a doutora interromperam a conversa. A doutora retirou o espelho. Colocou-o de costas para a criança. De repente, entendeu qual era a causa verdadeira da alergia:

— A Helena não tem alergia a si própria — anunciou nervosa. — Tem uma alergia ainda mais rara e esquisita.

— Como assim? — perguntou a Alcione.

— Tem alergia ao seu reflexo!!!!

A doutora quis fazer mais provas. Pegou no seu telemóvel e tirou uma foto da menina.

— Olha para a foto — pediu a doutora.

— Não quero — disse  Helena, a cobrir os olhos com as mãos.

— Olha, faz favor, é muito importante.

— Escuta a doutora, filhota — pediu a Alcione.

Lentamente, a menina retirou as mãos dos olhos e enxergou a foto.

— Estás pior? 

— Não...

— Então já entendi o que se passa. A Helena tem alergia ao seu reflexo em espelho, é dizer, que a sua parte direita seja a esquerda no espelho e ao invés. Mas nas fotos do telemóvel esse efeito pode ser evitado.

— E qual é então a solução, doutora?

— Teremos que pesquisar, mas, por enquanto, só podem fazer uma coisa: se ela se olhar no espelho, tem que ser através doutro espelho, para que os seus lados sempre fiquem no lado correto...

© Frantz Ferentz, 2024


Sem comentários: