sexta-feira, março 20, 2009

O animal de estimação de dona Sílvia [+10 anos].- XFC



Dona Sílvia era uma mulher idosa que apenas podia falar com a sua imagem no espelho e uma vez por semana com uma vizinha tão idosa como ela que morava acima. Vivia sozinha desde havia muitos anos, por isso é que ela queria ter um animal de estimação que lhe fizer companhia.
Dona Sílvia adorava ir ao parque, passear entre as árvores, respirar ar puro, sentar à sombra dos imensos carvalhos que lá havia. Tinha que se contentar com dar côdeas de pão às pombas. Mas infelizmente ela não podia levar as pombas para casa. Além disso, as pombas são animais muito sujos que fazem popó em toda a parte. Dona Sílvia, porém, era uma senhora muito limpa que gostava de ter a casa em perfeita ordem, como se for um palácio.
Tentou ir ela sozinha comprar uma mascote a uma loja, mas lá tinham cães do tamanho de um rato, gatos –ela odiava os gatos porque arranhavam as teias e comiam as peúgas-, papagaios muito escandalosos e roedores. Nada do que ela gostasse.
Mas um dia, dona Sílvia foi de excursão com o Lar da Terceira Idade do seu bairro –não gostava daquelas excursões, mas davam sobremesas de torta de chocolate, que ela adorava. Foram à capital, à cidade grande toda cheia de pessoas a correrem de um lado para outro como se estivessem sempre numa corrida, mas que ninguém ganhava. Dona Sílvia preferia morar na sua cidade pequena, porque lá as pessoas iam muito tranquilas, mas também devia reconhecer que era um bocadinho tedioso.
Aquela excursão era cansativa. O guia não fazia mais do que falar e falar de história, de senhores que fizeram dúzias de coisas, desde inventar a frigideira até lutar contra os selenitas. Ao final do dia, foram convidados ao zoo, mas dona Sílvia disse que ela não queria entrar, que fora à espera dos outros. O guia insistiu, mas a mulher disse que não e ela era muito cabeçuda. Portanto ficou fora, à sombra, num parque. Prometeu que seria boa e que não iria embora.
Era uma tarde muito agradável. Enquanto os outros velhotes visitavam o zoo, dona Sílvia ficou a contemplar as pessoas da cidade que corriam, passeavam, montavam em bicicleta ou jogavam futebol no parque. Mas de repente viu algo que se movia entre os matos. Levantou-se e foi ver. Era um cachorrito, alguém abandonara-o. Que mal coração tinham as pessoas que foram capazes de separar aquele cãozinho da sua mãe. Via-se aliás que não parecia um cão pequenino, daqueles que tinham o tamanho de uma rata grande.
Dona Sílvia decidiu adotar o cachorro. Sabia que no autocarro não lhe permitiriam levar aquele animalzito, mas ela tinha um saco imenso, onde além de dois pares de sapatos, as agulhas de tecer, uma flauta e três volumes da enciclopédia de cozinha. ainda encontrou lá um espaço para o cachorro ficar tranquilo. Mesmo comprou leite e uma mamadeira numa loja perto e preparou-lhe uma mamadeira de leite tépido, que o cãozinho engoliu cheio de fome.
E foi assim que dona Sílvia encontrou aquele lindo animal de estimação. O cãozinho adorava dona Sílvia e dona Sílvia adorava o cãozinho. Mesmo chamou-lhe Félix. Gostava do nome. E quando dona Sílvia começou a chamar o seu cão, que na altura crescera muito, o cão começou a rir.
– Olha, Félix, isso é que gostas do teu nome.
Na verdade era um animal muito alegre. Ria muito e comia sem parar. Dona Sílvia tinha que comprar muita carne para ele estar contente, mas também começou a alimentá-lo com tomates, pêssegos, bananas e nozes. O Félix costumou-se a comer de tudo. Era melhor assim.
E todas as tardes, dona Sílvia e o Félix passeavam pelo parque. A velhota comprara uma corda, mas o Félix era muito bom e não fazia correr à velhota. Era um animal muito inteligente. Mas o que dona Sílvia não entendia era por que os outros cães do parque fugiam do Félix. Bastava que ele risse e os cães corriam malucos. Com certeza os outros animais não tinham sentido do humor!!
Mas um dia, veio um senhor do banco. E é que dona Sílvia nem abria as cartas do banco –para que, eram muito tediosas, só traziam números e números e números... O senhor do banco quis ser amável. Premeu na campainha e pôs um sorriso muito grande, tanto que mesmo uma porção de pizza entraria por ele.
Dona Sílvia abriu. Tinha o avental posto. Estava a preparar filhoas.
– Bom dia, dona Sílvia, sou do banco... –começou a dizer o senhor do sorriso em que entrava uma pizza.
Mas não acabou de dizer nada, porque naquele momento apareceu na porta o Félix. Mal viu o senhor, o Félix começou a rir, tanto que até ria às gargalhadas...
O senhor do banco deixou cair a pasta ao chão e fugiu como um maluco a gritar:
– Uma hiena, a velha tem uma hiena em casa!!
Dona Sílvia pensou que o senhor era um mal educado porque insultava o seu Félix, tão lindo ele. E o Félix, que estava muito zangado, começou a morder a pasta do senhor do banco até a tornar pedacinhos minúsculos de papel.
Mas infelizmente vieram uns senhores do zoo para capturarem o Félix. Levaram-no para o zoo, onde o meteram numa gaiola.
Mas dona Sílvia não quis deixar o seu cãozinho sozinho. Por isso, ela instalou-se ao lado da gaiola do Félix no zoo, sob uma acácia muito grande. O seu caso apareceu na televisão. Ela dizia que só queria estar com o seu Félix, que era a melhor mascote do mundo e que quando estava com ela não fazia mal a ninguém. As pessoas começaram a visitar o Félix e dona Sílvia no zoo. O Félix já nem ria, ao contrário, parecia que ia chorar. Todos criticavam as autoridades por não permitirem a velhota ter aquela hiena consigo. Via-se que não podiam viver separados. Organizaram-se protestos perante a porta do zoo e da Câmara Municipal. As pessoas, muito chateadas, exigiam que dona Sílvia pudesse ter consigo aquela hiena simpática que ria com as anedotas que lhe contavam. Ameaçaram o Presidente da Câmara com não votar nele nas próximas eleições. Aquela era uma ameaça muito forte, os políticos têm terror disso.
Portanto, o Presidente da Câmara da cidade aceitou que dona Sílvia tivesse o Félix em sua casa e o zoo até lhe ofereceu um livro de receitas de comida para hienas, mas dona Sílvia não lhe fez caso, porque ela sabia que o Félix adorava as suas croquetes de cogumelos, as suas omeletes de batatas e até as francesinhas que ela tão bem preparava.
© Xavier Frías Conde 2009, 
todos os dereitos reservados

terça-feira, março 10, 2009

O devorador de livros [+10 anos] .- XFC


Na consulta do doutor Martins soou o telefone. O doutor estava para sair, já eram horas de voltar para casa. Teve a tentação de não responder, mas afinal pegou no telefone. Sentiu uma voz que disse:
 
– Boa tarde, doutor –soou a voz de uma senhora.
 
– Boa tarde...
 
– Sou a senhora Pereira e gostaria de lhe consultar um problema que tenho com o meu filho...
 
– Fale, minha senhora, fale...
 
– O meu filho tem cinco anos e gosta muito dos livros...
 
– Isso é bom, minha senhora –respondeu o doutor.
 
– Sim, mas o que eu quero dizer é que ele devora os livros, um após o outro. Um cada dia, doutorzinho!
 
– Ótimo, senhora –o doutor queria já acabar a conversa porque estava cansado e queria ir para casa logo–. As mães e os pais sempre se queixam de que os seus filhos não lêem. Além disso, eu não sou psicólogo, sou pediatra...
 
– Pronto, doutor, é por isso que ligo para si. O meu filho mal sabe ler. É que o meu filho come os livros... Sim, às vezes com batatas fritas e às vezes com maionese... É isso normal, doutor?
O doutor ficou com a boca aberta.
 
– Pronto, traga o seu filho à minha consulta amanhã de manhã, minha senhora. Tenho que fazer uma análise ao seu filho...


* * *


O doutor Martins encontrou-se com uma senhora normal e um garoto normal na sua consulta à primeira hora da manhã.

– Então, minha senhora, como é que o seu filho devora livros?

Antes de mãe responder, o garoto disse:

– Mamã, tenho fome, que não tomei o pequeno almoço...

A mamã tornou-se vermelha, mas não de calor, de vergonha.

O menino olhou pela sala. Lá havia alguns livros imensos, desses que têm os doutores com as capas muito duras. Não pareciam muito saborosos.

Então viu uma revista na mesa do doutor. Tinha bom aspecto, era fina. Serviria como aperitivo...

E sem dizer uma palavra, o menino apanhou a revista, que de facto era um catálogo de medicamentos, e começou a comê-lo.

O doutor olhava para ele sem poder dizer uma palavra.

O menino alçou os olhos para o doutor e ainda perguntou:

– Não tem ketchup para acompanhar a revista?

O doutor nem se deu conta que os seus óculos lhe caíam e se detinham na ponta dos narizes.
A senhora Pereira apenas murmurou:

– Carlinhos... não...

Demasiado tarde. O Carlinhos já estava a devorar a primeira página onde se anunciava um xarope para abrir o apetite das crianças.

* * *

Mas o caso do Carlinhos atraiu toda a atenção do doutor Martins. Começou a investigar sobre aquele estranho caso. Tratava-se de um papirófago, é dizer, um comedor de papel. Para além dos roedores, não era normal que as pessoas comessem papel. O Carlinhos podia ter um certo aspecto de rato, mas era um menino, disso nem tinha dúvidas.

O doutor Martin pediu à mamã da criança que levasse o seu filho à sua consulta para ser analisado. Devia submetê-lo a uma série de provas médicas até descobrir qual era a causa daquele comportamento.

O doutor Martins quis saber que tipo de livros comia o Carlinhos. Isso era importante, porque não comia qualquer tipo de livros. Apenas gostava dos livros com muitas imagens –ele mesmo dizia que se tinham pouca letra que não tinham bom sabor–. E entre eles adorava os livros de fadas, de monstros, de naves espaciais e de animais falantes. Às vezes, quando não tinha nada ao alcance da mão, podia comer uma revista, mas com fotos a cores.

Também investigou o doutor como começara aquele estranho comportamento. Apenas quando o menino deixou de mamar, começou a sugar no papel. Comia também “coisas normais”, mas sempre preferia o papel.

Os pais do Carlinhos tentaram esconder os livros para o menino não os comer, mas foi inútil, porque ele sempre encontrava alguma coisa de papel, ou de cartão. Comia, por exemplo, as caixas das bolachas mas não as bolachas.

Portanto os pais decidiram que se havia de comer papel, comê-lo-ia de qualidade. E foi assim que escolheram sempre livros infantis, bem ilustrados e com histórias interessantes. Porém, um bom dia, o Carlinhos deixou de comer “coisas normais” para só se alimentar de papel.
E foi então que os senhores Pereira decidiram consultar com o doutor.

* * *

O doutor Martins começou a fazer provas.

Primeiro deu um livro ao Carlinhos em árabe. Queria saber se o garoto gostaria de um livro escrito naquela língua. Procurou que fosse um livro com muitas imagens, porque sabia que o Carlinhos não o comeria se não tinha imagens.

Era um livro muito comprido, mas o Carlinhos não comera nada durante muitas horas, portanto tinha fome.

– E então –perguntou o doutor–, gostaste do livro?

– Na3am, alkitáb hasan.

O doutor esta vez sim sentiu que os óculos lhe caíam até ao chão. O menino tinha-lhe respondido em árabe.

Após a surpresa, o doutor tinha ainda mais interesse em continuar com as provas. Se o Carlinhos era capaz de falar árabe após ter lido um livro nessa língua, se calhar poderia aprender outro idioma se lhe dava outro livro.

Um dia depois deu-lhe um livro que falava de baleias dançarinas. Aquele estava escrito em inglês, o qual era um idioma que o doutor percebia. Queria saber até onde chegava a capacidade de apreender do Carlinhos.

– So, Charles, did you like it?

– Sure. It was good. Perhaps a bit salty...

“Salty”, salgado. Claro, era um livro que falava do mar, portanto era normal que estivesse salgado. Mas o mais incrível é que o menino respondera em inglês.

Aquele mesmo dia o doutor Martins falou com a mãe e o pai do Carlinhos:

– O seu filho apreende com o estômago... –foi a sua conclusão.

– Desculpe, ó doutor –disse o senhor Pereira–. O senhor bebeu?

O doutor estava ofendido. Ele nunca estava bêbedo. Mas mesmo assim explicou:

– As pessoas apreendem com os sentidos, nomeadamente, com a vista e o ouvido, mas o seu filho apreende particularmente com o estômago.
– É brincadeira, não é? –perguntou então a mãe.

Mas o doutor pôs o filho perante os pais. Depois deu-lhe para comer um livro em alemão que tratava duns gnomos do bosque que organizavam corridas em gafanhotos.

– Hallo, Karl, was hast Du gelest?

– Ein sehr interessant Buch, herr Doktor. Ich mag es.

Os pais ficaram tão surpreendidos que nem puderam dizer nada em três dias. Perderam a voz.

* * *

O doutor Martins estava muito contente com os seus experimentos. Pensou que ia apresentar aquele caso a um congresso de científicos. Seriam um grande pulo para a sua carreira profissional.

– Á doutor –perguntou a mãe do Carlinhos–, a sério vai apresentar o caso do nosso filho aos seus colegas? Mas depois é que eles vão querer conhecê-lo e vão tratá-lo como se for um extraterrestre...

O doutor Martins sorria mas nem escutava. Ele estava muito satisfeito com aqueles acontecimentos. Por nada no mundo ia renunciar àqueles papeis que tinha acima da mesa, onde recolhia todas as suas experiências...

– Á Carlinhos –sentiu-se então a voz da senhora Pereira–, porque é que comes agora esses papéis?

Quando o doutor se virou, comprovou cheio de horror que o Carlinhos estava a comer todas as suas notas, embora não tivessem desenhos.

– Á rapaz! O que estás a fazer? –perguntou o doutor com o coração aos pés.

O Carlinhos engoliu o último troço de papel e depois disse:

– Caro colega, acho que fez um estudo muito bom. Quando tiver outro, avise-me...

Ao doutor Martins não lhe caíram naquela altura os óculos ao chão. Foi ele próprio que caiu quando comprovou que não poderia demonstrar nada...

O Carlos e a sua mamã saíram pela porta do consultório enquanto o menino perguntava à mãe:

– Mamã, mamã, como fui muito bom e já posso comer coisas sem desenhos, posso comer amanhã um conto de bruxas feias para a sobremesa?

– Podes, meu rei, podes...



©Xafrico 2008. 
All rights reserved worldwide