terça-feira, março 10, 2009

O devorador de livros [+10 anos] .- XFC


Na consulta do doutor Martins soou o telefone. O doutor estava para sair, já eram horas de voltar para casa. Teve a tentação de não responder, mas afinal pegou no telefone. Sentiu uma voz que disse:
 
– Boa tarde, doutor –soou a voz de uma senhora.
 
– Boa tarde...
 
– Sou a senhora Pereira e gostaria de lhe consultar um problema que tenho com o meu filho...
 
– Fale, minha senhora, fale...
 
– O meu filho tem cinco anos e gosta muito dos livros...
 
– Isso é bom, minha senhora –respondeu o doutor.
 
– Sim, mas o que eu quero dizer é que ele devora os livros, um após o outro. Um cada dia, doutorzinho!
 
– Ótimo, senhora –o doutor queria já acabar a conversa porque estava cansado e queria ir para casa logo–. As mães e os pais sempre se queixam de que os seus filhos não lêem. Além disso, eu não sou psicólogo, sou pediatra...
 
– Pronto, doutor, é por isso que ligo para si. O meu filho mal sabe ler. É que o meu filho come os livros... Sim, às vezes com batatas fritas e às vezes com maionese... É isso normal, doutor?
O doutor ficou com a boca aberta.
 
– Pronto, traga o seu filho à minha consulta amanhã de manhã, minha senhora. Tenho que fazer uma análise ao seu filho...


* * *


O doutor Martins encontrou-se com uma senhora normal e um garoto normal na sua consulta à primeira hora da manhã.

– Então, minha senhora, como é que o seu filho devora livros?

Antes de mãe responder, o garoto disse:

– Mamã, tenho fome, que não tomei o pequeno almoço...

A mamã tornou-se vermelha, mas não de calor, de vergonha.

O menino olhou pela sala. Lá havia alguns livros imensos, desses que têm os doutores com as capas muito duras. Não pareciam muito saborosos.

Então viu uma revista na mesa do doutor. Tinha bom aspecto, era fina. Serviria como aperitivo...

E sem dizer uma palavra, o menino apanhou a revista, que de facto era um catálogo de medicamentos, e começou a comê-lo.

O doutor olhava para ele sem poder dizer uma palavra.

O menino alçou os olhos para o doutor e ainda perguntou:

– Não tem ketchup para acompanhar a revista?

O doutor nem se deu conta que os seus óculos lhe caíam e se detinham na ponta dos narizes.
A senhora Pereira apenas murmurou:

– Carlinhos... não...

Demasiado tarde. O Carlinhos já estava a devorar a primeira página onde se anunciava um xarope para abrir o apetite das crianças.

* * *

Mas o caso do Carlinhos atraiu toda a atenção do doutor Martins. Começou a investigar sobre aquele estranho caso. Tratava-se de um papirófago, é dizer, um comedor de papel. Para além dos roedores, não era normal que as pessoas comessem papel. O Carlinhos podia ter um certo aspecto de rato, mas era um menino, disso nem tinha dúvidas.

O doutor Martin pediu à mamã da criança que levasse o seu filho à sua consulta para ser analisado. Devia submetê-lo a uma série de provas médicas até descobrir qual era a causa daquele comportamento.

O doutor Martins quis saber que tipo de livros comia o Carlinhos. Isso era importante, porque não comia qualquer tipo de livros. Apenas gostava dos livros com muitas imagens –ele mesmo dizia que se tinham pouca letra que não tinham bom sabor–. E entre eles adorava os livros de fadas, de monstros, de naves espaciais e de animais falantes. Às vezes, quando não tinha nada ao alcance da mão, podia comer uma revista, mas com fotos a cores.

Também investigou o doutor como começara aquele estranho comportamento. Apenas quando o menino deixou de mamar, começou a sugar no papel. Comia também “coisas normais”, mas sempre preferia o papel.

Os pais do Carlinhos tentaram esconder os livros para o menino não os comer, mas foi inútil, porque ele sempre encontrava alguma coisa de papel, ou de cartão. Comia, por exemplo, as caixas das bolachas mas não as bolachas.

Portanto os pais decidiram que se havia de comer papel, comê-lo-ia de qualidade. E foi assim que escolheram sempre livros infantis, bem ilustrados e com histórias interessantes. Porém, um bom dia, o Carlinhos deixou de comer “coisas normais” para só se alimentar de papel.
E foi então que os senhores Pereira decidiram consultar com o doutor.

* * *

O doutor Martins começou a fazer provas.

Primeiro deu um livro ao Carlinhos em árabe. Queria saber se o garoto gostaria de um livro escrito naquela língua. Procurou que fosse um livro com muitas imagens, porque sabia que o Carlinhos não o comeria se não tinha imagens.

Era um livro muito comprido, mas o Carlinhos não comera nada durante muitas horas, portanto tinha fome.

– E então –perguntou o doutor–, gostaste do livro?

– Na3am, alkitáb hasan.

O doutor esta vez sim sentiu que os óculos lhe caíam até ao chão. O menino tinha-lhe respondido em árabe.

Após a surpresa, o doutor tinha ainda mais interesse em continuar com as provas. Se o Carlinhos era capaz de falar árabe após ter lido um livro nessa língua, se calhar poderia aprender outro idioma se lhe dava outro livro.

Um dia depois deu-lhe um livro que falava de baleias dançarinas. Aquele estava escrito em inglês, o qual era um idioma que o doutor percebia. Queria saber até onde chegava a capacidade de apreender do Carlinhos.

– So, Charles, did you like it?

– Sure. It was good. Perhaps a bit salty...

“Salty”, salgado. Claro, era um livro que falava do mar, portanto era normal que estivesse salgado. Mas o mais incrível é que o menino respondera em inglês.

Aquele mesmo dia o doutor Martins falou com a mãe e o pai do Carlinhos:

– O seu filho apreende com o estômago... –foi a sua conclusão.

– Desculpe, ó doutor –disse o senhor Pereira–. O senhor bebeu?

O doutor estava ofendido. Ele nunca estava bêbedo. Mas mesmo assim explicou:

– As pessoas apreendem com os sentidos, nomeadamente, com a vista e o ouvido, mas o seu filho apreende particularmente com o estômago.
– É brincadeira, não é? –perguntou então a mãe.

Mas o doutor pôs o filho perante os pais. Depois deu-lhe para comer um livro em alemão que tratava duns gnomos do bosque que organizavam corridas em gafanhotos.

– Hallo, Karl, was hast Du gelest?

– Ein sehr interessant Buch, herr Doktor. Ich mag es.

Os pais ficaram tão surpreendidos que nem puderam dizer nada em três dias. Perderam a voz.

* * *

O doutor Martins estava muito contente com os seus experimentos. Pensou que ia apresentar aquele caso a um congresso de científicos. Seriam um grande pulo para a sua carreira profissional.

– Á doutor –perguntou a mãe do Carlinhos–, a sério vai apresentar o caso do nosso filho aos seus colegas? Mas depois é que eles vão querer conhecê-lo e vão tratá-lo como se for um extraterrestre...

O doutor Martins sorria mas nem escutava. Ele estava muito satisfeito com aqueles acontecimentos. Por nada no mundo ia renunciar àqueles papeis que tinha acima da mesa, onde recolhia todas as suas experiências...

– Á Carlinhos –sentiu-se então a voz da senhora Pereira–, porque é que comes agora esses papéis?

Quando o doutor se virou, comprovou cheio de horror que o Carlinhos estava a comer todas as suas notas, embora não tivessem desenhos.

– Á rapaz! O que estás a fazer? –perguntou o doutor com o coração aos pés.

O Carlinhos engoliu o último troço de papel e depois disse:

– Caro colega, acho que fez um estudo muito bom. Quando tiver outro, avise-me...

Ao doutor Martins não lhe caíram naquela altura os óculos ao chão. Foi ele próprio que caiu quando comprovou que não poderia demonstrar nada...

O Carlos e a sua mamã saíram pela porta do consultório enquanto o menino perguntava à mãe:

– Mamã, mamã, como fui muito bom e já posso comer coisas sem desenhos, posso comer amanhã um conto de bruxas feias para a sobremesa?

– Podes, meu rei, podes...



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