sábado, janeiro 26, 2008

O beijo da rã [+12 anos].- XFC


I


    Há mais de mil anos, quando ainda os bruxos faziam coisas terríveis como converter as pessoas em sopas ou fazer que ladrassem como cães, houve um deles muito cruel. Tratava-se do bruxo Aldus Caiphus, temido por todos no reino, mesmo pelo rei.
    Aldus Caiphus convertera dúzias de pessoas nas coisas mais estranhas e até o rei tinha medo dele, porque, no fundo, Aldus Caiphus tinha na mente converter-se no rei, mas ele sabia que a magia não lhe bastava, precisava de legitimidade. Para isso, devia casar-se com a princesa, a filha do rei, a bela Lydia.
No dia do solstício de Verão, o Aldus Caiphus caminhou até ao palácio do rei para pedir a mão da princesa. Estava seguro de que o rei aceitaria, porque preparara uma feitiço terrível que era capaz de converter o mesmo monarca em sapo. Ninguém obedeceria um rei, por muito sangue real que tivesse. Já sabia o que lhe diria:
    - Rei Vassileio, se não me dás a mão da tua filha, converter-te-ei em sapo.
    Mas o que o temível Aldus não previra foi que alguém o estivera a espiar na sua morada. Tratava-se do anão Gilberto, que apenas media um metro e meio. O anão era o mais eficaz espião do monarca. Era capaz de se esconder num pequeno barril de vinho, a respirar por uma palhinha e a ouvir embaixo do líquido mercê a um aparelho inventado por ele próprio.
    O Gilberto adiantou-se ao Aldus cavalgando a sua velocíssima cabra e chegou ao palácio do Rei. Informou-lhe dos planos terríveis do bruxo, o qual assustou o monarca. Mas sua filha disse-lhe:
    - Meu senhor, não vos aflijais. Eu sei como resolver o problema. Vamos ao salão do trono para receber o bruxo, que é lá que eu o lhe ensinarei a sua lição.
    O bruxo Aldus entrou no palácio real abrindo as portas com um movimento da sua mão, protegido por um malefício que impedia qualquer ataque dos guardas do castelo. Até que chegou perante as portas do trono. Lá estendeu as mãos e as portas abriram-se fazendo muito barulho. O rei tremia, a princesa estava tranquila. Sem muitos comprimentos, o bruxo disse ao rei:
    - Quero a mão da tua filha, rei Vassileio. Se não o fizeres, receberás a minha fúria.
    O rei estava muito nervoso, mas a sua filha fez-lhe um acento para ficar tranquilo. Como o bruxo não obtinha resposta do rei, passou à acção. Estendeu os braços na direcção do monarca e pronunciou um esconjuro. Enquanto pronunciava as palavras mágicas, não se deu conta de que a princesa fizera um aceno a um dos guardas, o qual se plantou com um espelho diante do rei. Quando os eflúvios mágicos do bruxo fluíram face ao monarca, eles bateram contra o espelho e tornaram-se contra o próprio Aldus.
    Imediatamente, o bruxo tornou-se em rã. Fora vítima do seu próprio encantamento. O rei mandou apanharem aquele animal e deixá-lo num açude, muito longe do palácio, até o seu último dia.
Mas todos eles erraram. O bruxo Aldo não morreu logo como morrem as rãs, mas viveu e viveu durante séculos, à espera de que alguém o beijasse, uma donzela, pois outramente não havia jeito de quebrar aquele encantamento que ele próprio criara.




II



    Transcorreram mil anos justos desde o dia em que Aldus se convertera em rã por causa da astúcia da princesa Lydia. O bruxo nunca esquecera aquela data.
    Durante aquele longo milênio alimentara-se de moscas e ervas, passara os invernos oculto baixo a vegetação do açude, o qual chegou a desaparecer havia uns anos por causa da acção dos homens, que mudavam toda a paisagem. Além do frio, da fome e das bestas, a rã Aldus tivera que se proteger dos humanos, mas estava sempre atento às donzelas. Infelizmente, nenhuma das que encontrara sentiu desejos de beijá-lo.
    A primeira que encontrara era uma camponesa chamada Rufina, trinta anos depois do encantamento. O Aldus saltou até ao seu peito para lhe pedir um beijo. Mas ela, ao vê-lo ali colocado, sentiu um nojo terrível e apanhou a foice que levava no cinto com a intenção de esfolá-lo (era uma rapariga muito decidida), mas felizmente a rã teve reflexos de mais e saltou para umas matas, onde ficou imóvel.
    O Aldus apreendeu a lição. Por isso, quis estar muito atento às donzelas, porque os tempos mudavam e estavam a se tornar muito agressivas. Tinha muitas saudades dos seus poderes de bruxo, mas não havia maneira de os recuperar sem se converter novamente em ser humano.
    A seguinte ocasião em que tentou obter o beijo de uma donzela foi trezentos e cinquenta anos depois do encantamento. Mas foi uma gafe, porque ele se achegou a uma figura humana que ia toda coberta com roupagens compridas. O bruxo pensou que se tratava de uma anciã. Ele não se importava já naquela altura de ser beijado por uma velhota, porque o importante era um beijo feminino.
    O Aldus aproveitou que a mulher se inclinara sobre o açude para beber água e saltou acima da sua cabeça. Ela pareceu não dar-se conta. Depois a mulher ficou de pé. A rã então fez um ágil movimento para alcançar os beijos da mulher, mas o que ali achou não era precisamente uns doces lábios femininos, mas um enorme bigode que se lhe cravaram nos seus focinhos de anfíbio.
    O humano, que certamente era um homem e não uma mulher, ao sentir aquele contacto tão nojento, tirou uma cimitarra que levava baixo as roupagens e quis bater aquele inimigo invisível, mas já o Aldus conseguira fugir para o centro do açude. Compreendera que se tratava de um muçulmano vestido à usança tradicional da sua terra, por isso pensara ele que se tratava de uma mulher.
    E assim correram vários séculos sem o Aldus tentar novamente ser beijado por uma donzela, pois o medo nele era imenso.
    Houve outras tentativas de acostar-se a uma mulher, mas foram todas um grande insucesso. Nem vale a pena narrá-las, excepto uma em que quando estava o Aldus a tomar o sol na beira do açude, uma rede caiu acima dele. Fora capturado. Tratava-se de um rapaz que era capaz de caçar qualquer bicho do campo, desde pardais até cobras. As rãs não tinham segredos para ele.
    O coitado do Aldus foi levado até a cabana onde morava o rapaz com a sua numerosa família. A mãe quis meter o Aldus na caçarola para fazer umas sopas com ele, mas teve a sorte de que, no último segundo, a filha pequena o resgatara e o levara para o seu canto segredo na cabana. Lá meteu-o numa caixinha de madeira com erva fresca. A rã pensou que estava segura, embora não tivesse água. Porém não podia imaginar o que lhe ia acontecer a seguir.
    A menina começou a pôr à rã com vestidinhos que ela mesma fizera com lã recolhida da roupa velha. O Aldus sentiu que afogava. Precisava meter-se na água logo. Mas a menina estava feliz com aquela nova boneca viva. Estava tão linda com aqueles vestidinhos feitos sob medida!!
Se o bruxo se tivesse visto num espelho, teria morto de vergonha.
    Felizmente para ele, a menina esquecera fechar bem a caixa de madeira pela noite. O Aldus fugiu rapidamente dando pulos até alcançar a porta. Conseguiu chegar ao seu açude, mas não foi capaz de se tirar aquele vestidinho lindo que lhe fizera a menina durante vários anos.




III


    E assim voltamos ao início do capítulo anterior, quando o Aldus chega ao nosso tempo.
    Se pensam que depois de tanto tempo convertido em rã as intenções do Aldus mudaram, dir-vos-ei que não foi assim. Embora fosse uma rã, não era uma rãinha verde miúda e bonita, mas um sapo feio e cheio de verrugas que largava arrotos cada vez que engolia uma mosca.
    Assim visto, parece incrível que qualquer donzela pousasse os seus olhos nele. Mas afinal aconteceu. Uma donzela deu-lhe um beijo. Que querem saber como é que aconteceu? Tenham um bocadinho de paciência.
    Primeiro é preciso explicar que a rapariga em questão era muito curta de vista. Chamava-se Josephine e estudava Ciências numa Universidade dos Estados Unidos de América.
    A Josephine estava a realizar uma viagem de estudos quando se aproximou do açude onde desde havia séculos morava o Aldus. De facto já não era um açude, mas um estanque no meio de um parque, porque as coisas mudam. A Josephine procurava caracóis de concha rangente, exclusivos daquela zona do país. Mas a rapariga encontrou uma bola fofa e cheia de grãos.
    O Aldus dormia sobre uma espécie de ilhó no meio do estanque, numas ervas, alheio ao perigo que o espreitava. Por isso não viu a rapariga meter-se na água e avançar para ele com a água até o peito. Ela encontrou-o adorável –lembrem que era muito curta de vista–, mesmo teve a impressão que se tratava de uma linda rã pequenina. Por isso quis ter aquele animalzinho para si, como mascote. Levá-lo-ia aos Estados Unidos numa pequena caixa de marfim, com musgo artificial.
    O Aldus pensou que aquilo era a sua fim, porque ele era muito mais grande do que a rapariga pensava. Ia naquela caixa todo constrito, sem poder mexer nem um dedo.
    Mas os seus problemas apenas começaram. Quando chegaram à alfândega dos Estados Unidos, a Josephine teve que mostrar tudo o que trazia da Europa. E lá estava a caixinha de marfim. O polícia, um fulano com face de crocodilo, pediu à rapariga que abrisse a caixinha.
    Ela obedeceu, porque era muito bem educada. E então, xaaf! O Aldus saltou. E começou a correr pela mesa.
    O polícia tirou a arma e gritou:
    – Atenção!!!
    Três polícias correram ao seu lado, também com as pistolas (bom, de facto um deles levava um fuzil para matar elefantes, se calhar, aquilo era o mais adequado para acabar com um sapo).
A Josephine saltou acima da mesa e perseguiu o sapo, que acabou por correr por entre os passageiros que faziam fila diante da alfândega.
    – Volta, meu sapinho, volta!! –gritava ela desesperada trás dele.
    E os quatro polícias também, com as armas prontas para abrirem fogo contra o sapo.
    Mas a Josephine fora campeã de natação, por isso saltou sobre o sapo justo quando ele estava para cair na cabeça de um indiano com turbante. A rapariga apanhou o sapo no ar, mas os polícias já não puderam impedir o golpe e tiraram o indiano pelo chão, que começou a berrar qualquer coisa muito feia, mas impossível de entender.
    A Josephine estava toda emocionada. Por isso beijou o sapinho e... Magia!!!
    O sapo recuperou a forma humana, depois de tantos e tantos anos...
    Mas ainda o Aldus não puído evitar largar a língua para provar a capturar uma mosca que então passava por ali.



IV



    Quando os polícias se recuperaram da queda, o primeiro que fizeram foi apontar com as armas para toda a parte. Os viageiros tiraram-se todos pelo chão. Apenas ficaram em pé a Josephine e o Aldus.
    – Mãos para cima!!
    Os quatro polícias e outros seis que chegaram atraídos pela barulheira. Oito pistolas, um fuzil e até um canhão apontavam para o Aldus. É que devem entender que ele vestia as mesmas roupas que levava quando recebeu o seu próprio feitiço.
    Mas o Aldus estava em plena forma. Sentia-se como novo. Por isso alçou as mãos e gritou:
    – Pulvus anorexicus in testis stupidis, tornate vos aquae equis.
    Nesse momento, os dez polícias tornaram-se em hipopótamos, mas vestidos com os seus uniformes de polícias, com o boné acima das suas orelhinhas.
    – Vitória!! –gritou o Aldus muito contente, enquanto os passageiros, que estavam fartos das doidices dos polícias, aplaudiam entusiasmados.
    A Josephine tomou-o da mão e empurrou dele para a porta. Iam sair da alfândega e entrar nos Estados Unidos.
    O Aldus era feliz. A Josephine pediu um táxi na saída. O bruxo estava entusiasmado com o que via. Ele sabia que com os seus poderes tudo aquilo seria seu, converter-se-ia no amo daquele país...
    – Meu, todo meu... –murmurava ele.
    – És tão bonito –sussurrava a Josephine apertando o seu braço molemente.
    – Vou conquistar o mundo –disse o Aldus.
    – Que encantador...
    E então ela lançou-se sobre ele e deu-lhe um beijo nos lábios sem avisar.
    Naquele instante, o Aldus recuperou a sua forma de sapo.
    A Josephine estive muito atenta. Pegou nele quando estava para saltar pela janela do táxi e meteu-o na mesma caixinha onde trouxera de avião.
    O taxista ainda perguntou:
    – O que foi? Onde está o tipo estranho que vinha consigo?
    – Deveu enganar-se... Eu viajava sozinha.
    A Josephine deu uns golpes com a mão na caixinha de marfim e enquanto pensava qual seria a morada definitiva daquele seu amor apaixonado.


© Xavier Frias Conde
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