Um bom dia, pelo Bairro do Leste começou a ser visto um gato azul. Isso era muito estranho, porque os gatos podem ser de várias cores, principalmente brancos, pretos, cinzentos e tigrados, em cujo caso podem ser cinzentos de riscos brancos ou alaranjados de riscos também brancos; há mesmo gatos pintos, brancos com pintas pretas (ou se calhar pretos com pintas brancas).
Fosse como for, aquele gato que começou a ser visto pelo Bairro do Leste era claramente azul, azul brilhante, para sermos mais precisos.
Visto que aquele era um bairro muito tranquilo, onde quase nunca se passava nada, onde todas as pessoas se conheciam, embora fosse só de vista, era muito estranho que aparecesse de repente um animal assim, um gato azul.
Se tivesse sido um gato comum, provavelmente ninguém teria reparado nisso, mas aquele gato era azul. Onde havia gatos azuis?
Para os vizinhos, o assunto do gato azul tornou-se o tema principal das suas conversas. Faziam muitas hipóteses, alguns sustinham que, se calhar, se tratava de um gato extraterrestre. Havia quem cria que se tratava de um gato que frequentava o cabeleireiro e, portanto, seguia as modas, mas de facto naquele bairro havia apenas um salão de cabeleireiro onde apenas enfeitavam e lavavam e cortavam os cabelos, aliás, com não muito bons resultados.
Porém, para além das hipóteses acerca da natureza do gato, as pessoas começaram a falar sobre quem era o seu dono. Assim, falando entre eles, logo souberam que, com efeito, uma nova vizinha tinha chegado ao bairro. Tratava-se de uma mulher que vivia sozinha numa casa individual, rodeada de um jardim, na Rua dos Freixos.
Alguns vizinhos observaram que o gato entrava e saía daquela casinha, o qual era motivo demais para elucubrarem que aquele era o lar do gato e, portanto, forçosamente tinha de pertencer àquela mulher que lá morava.
Há que entender que, como aquele bairro era tão, tão tranquilo, qualquer recém-chegado, qualquer novidade, atraía a atenção dos seus habitantes.
É preciso confessar que se aborreciam muito, coitados, portanto, aquela descoberta de um gato azul que se passeava solto pelo bairro e que pertencia a uma recém-chegada, tornou-se o centro de interesse dos seus habitantes.
E assim, formou-se uma comissão cidadã responsável pelas pesquisas. Todos queriam descobrir por que o gato era azul e quem era a sua dona. Muitos deles tinham medo do gato azul.
Não é que o animal se manifestasse perigoso nem ameaçasse ninguém, mas um gato azul é uma coisa esquisita e o que é esquisito amiúde assusta. A comissão dos vizinhos estava composta pelo seu líder, o João Carapão, e outros dois vizinhos que tiveram a coragem de o acompanhar: o Serafim Martins e o Antonino do Caminho. Se o Bairro do Leste algum dia conseguia converter-se numa cidade, com certeza eles três seriam as máximas autoridades, com o João Carapão de presidente da câmara.
Assim, a comissão organizou uma série de vigilâncias. Os vizinhos, por turnos, foram ocupando-se da observação da casa da recém-chegada na Rua do Freixo.
Durante uma semana, sem pausa, os vizinhos espiaram a nova vizinha. Sempre de fora, é claro, porque era impossível ver o que acontecia dentro da casa. Aliás, todas as janelas estavam cobertas com cortinas que impediam ver o que acontecia no interior.
Os vizinhos montaram quatro pontos de observação. Um em frente da porta principal e o resto nas ruas laterais, na Rua dos Cravos e na Rua dos Bonecos Tristes. O quarto ponto estava na casa que ficava na traseira da casa vigiada, de uma janela estrategicamente situada, da qual os próprios moradores espiavam.
As pessoas encontraram engraçado espiar Como naquele bairro nunca se passava nada, o facto de terem algo diferente para fazer prestava mesmo.
Os vizinhos envolvidos naquela atividade tomaram-na muito a sério, muito mesmo. E até escreviam relatórios sobre o que viam, que era mesmo pouca coisa, porque, como já disse, as cortinas da casa impediam que se visse nada do exterior. As únicas manifestações estranhas eram clarões que surgiam do interior.
Não sucediam a qualquer hora concreta, mas aleatoriamente, sem pauta nenhuma. Ao final da primeira semana, todos os espiões entregaram os seus relatórios à comissão dos vizinhos.
O João Carapão começou a ler o que lá se dizia. Pronto, os relatórios eram um autêntico caos, ali cada qual dizia uma chatice diferente. Algumas das hipóteses que lá se recolhiam eram:
O prédio estava ocupado por uma fabricante ilegal de microarmas nucleares a pequena escala, as quais provava em casa. O gato era o seu veículo para transportar fora as microbombas. A cor azul era para passar despercebida pelos radares.
A moradora da casa vigiada era uma extraterrestre infiltrada. Não se sabia se as suas intenções eram pacíficas ou, se, pelo contrário, recompilava informações para permitir uma invasão do nosso planeta. O gato seria um robô que ela usaria para conseguir informação e espiar.
Era uma maluca que nem saía da sua casa e gostava de fazer explodir produtos que tinha no lar. Nesse relatório não se fazia qualquer hipótese sobre a natureza do gato.
Bom, todas as hipóteses tinham alguma lógica, mas a comissão não conseguia decidir-se por qual a mais verossimilhante. Era evidente que a mera observação daquela vizinha não bastava para averiguar qual o mistério do gato azul do qual, sem dúvida, ela era a dona.
Porém, aconteceu algo que apressou a tomada de decisões. Foi algo inesperado, do qual se apercebeu um dos vizinhos numa noite de lua cheia: o gato deixou de ser azul e passou a ser verde. Um gato verde? Como assim? Onde se tinha visto um gato verde?
Se já um gato azul era uma coisa esquisita, muito mais era um gato verde.
As suspeitas de o gato ser um extraterrestre ganharam força, talvez pelo estereótipo de os extraterrestres serem verdes, portanto os seus gatos, também.
Lá o João Carapão impôs a sua autoridade no Bairro do Leste —a qual esperavam que no futuro fosse uma cidade independente, como já disse— e falou aos seus vizinhos numa assembleia secreta.
É preciso dizer que a assembleia era secreta porque a faziam na sua garagem com a porta fechada, mas de fora ouviam-se todas as vozes; porém, para eles era muito emocionante pensarem que estavam a fazer algo de incógnito naquele bairro onde nunca se passava nada, mas que algum dia chegaria a ser uma cidade. Aliás, todos os vizinhos estavam lá apertadinhos como numa lata de sardinhas —que tinha chegado o momento de ir ter umas palavrinhas com a vizinha estranha.
Os vizinhos louvaram o valor do João Carapão.
Mágoa que o Bairro do Leste não fosse um município, pensaram todos, porque aquele homem merecia, sim, chegar a ser presidente da câmara, ou até governador, ou ainda presidente do governo.
Que coragem, que capacidade de liderar tinha. Não era estranho que ele fosse admirado por todos no bairro. Porém, justo antes de a comissão ir visitar a vizinha proprietária do gato azul, bom agora verde, aconteceu algo mais, algo verdadeiramente surpreendente.
Um dos vizinhos que vigiava assegurou que tinha visto uma vassoura sair voando por uma das janelas da casa.
— Uma vassoura voadora? —perguntaram os vizinhos que ouviram aquela afirmação.
— Era uma vassoura voadora —confirmou o vizinho.
— E conseguiste tirar uma foto disso?
— Bom, tentei com o telemóvel —disse o vizinho.
— Mostra lá.
E ele mostrou a foto que tinha tirado com o telemóvel, mas não se via grande coisa, porque era de noite e só se via uma nódoa escura, que poderia ser qualquer coisa, desde um elefante pequeno a aboiar até uma torrada extra- grande que saísse disparada pela janela.
— Não há qualquer dúvida que essa mulher é uma bruxa —concluiu o João Carapão fazendo notar a sua autoridade no bairro—. Já são horas de ir fazer uma visita a essa mulher. Se calhar, é uma ameaça para os vizinhos do Bairro do Leste.
Todos apoiaram aquelas palavras que consideravam sábias, mas ninguém sabia quais as intenções do João Carapão. Porém, ele já tinha tomado a decisão de ir até à casa da suposta bruxa para averiguar o que lá havia. Os seus dois inseparáveis colegas, o Serafim Martins e o Antonino do Caminho, apegaram-se a ele como se fossem a sua sombra e foram até aquela casa da Rua do Freixo.
O João Carapão ia bater na porta, mas nem foi preciso, porque a porta se abriu sozinha, e até rangeu. Todos os três sentiram medo, mas ninguém disse nada, não iam reconhecer os seus temores. Entraram. O interior estava em penumbra. Chegaram a um salão onde apenas se notavam silhuetas, porque as formas eram irreconhecíveis.
De repente, uma voz saída de não se sabia onde cumprimentou-os:
— Bom dia, senhores! Obrigada pela vossa visita.
Eles olharam para toda a parte, mas não conseguiam ver de onde tinha saído aquela voz de mulher. Pouco a pouco, os olhos dos homens foram habituando-se à escuridão. Assim, puderam notar que o salão em que se encontravam estava todo rodeado de telas.
Nas telas havia nódoas de todo o género. No centro, bulia um caldeirão num fogão elétrico. E, ao lado do caldeirão, uma mulher com os cabelos todos desarrumados olhava para eles com um imenso sorriso.
— Vieram comprar algum dos meus quadros? —perguntou a mulher
Os três homens ficaram imóveis no limiar, a olhar para aquele cenário alucinante para eles. Nem eram capazes de pronunciar uma palavra.
— Desculpem a minha má educação. Chamo-me Joana e sou pintora
— Pintora? —lá já o João Carapão conseguiu pronunciar uma palavra.
— Sim, sou pintora de arte abstrata. Por isso os meus quadros não têm qualquer forma. Vocês veem lá imagens diversas, com cores misturadas. Eu fabrico as minhas pinturas aqui no meu caldeirão, porque quero que todo o processo seja feito por mim.
— E a senhora tem um gato azul... ou verde?
Lá a Joana riu, largou umas boas gargalhadas.
— Tenho. Porque o pergunta?
— Porque foi visto pelo bairro e os vizinhos perguntavam-se como assim que um gato era azul... ou verde.
— Tem uma explicação muito singela. O meu gato gosta de jogar e por vezes cai num dos meus caldeirões. Então a sua pele fica tingida. Ontem caiu no caldeirão de pintura verde que estava a preparar e por isso ficou dessa cor.
Aquela explicação tinha muita lógica. O João Carapão não queria fazer mais pesquisas, porque, aliás, não gostava daquela casa. Seria uma pintora, sim, mas dava medo aquela mulher.
Ia fazer já um gesto aos seus colegas da comissão para irem embora, quando o Serafim Martins perguntou:
— A senhora não terá saído a voar uma noite montada numa vassoura?
Durante uns segundos houve um silêncio que permitiu ouvir nitidamente o “blub-blub” das bolhas do líquido que fervia no caldeirão, mas bem logo a Joana disse:
—Uma vassoura? Mas como ia sair uma vassoura voando desta casa? O que provavelmente viu alguém foi uma tela que eu lancei para o ar porque não gostava dela e a nódoa, talvez, pareceu uma vassoura voadora. Quer isso dizer que os vizinhos deste bairro me espiam?
—Não, não, não —mentiram os três membros da comissão ao mesmo tempo
— E que parece isso. Bom, e já que estão aqui, figuro-me que não vão embora sem comprar-me alguns dos meus quadros.
Os três homens meteram as mãos nos bolsos e procuraram todo o dinheiro que levavam consigo.
Felizmente, deu para comprarem dois quadros pequenos, que levaram com eles, enquanto se despediam rapidamente desde a porta, desejando à pintora muito sucesso com o seu trabalho.
Assim que a porta da casa fechou, o gato, novamente azul, saltou ao colo da Joana, que já naquela altura se tinha sentado num sofá de couro preto.
— Estes mortais são cada vez mais difíceis de enganar, Milo —disse-lhe enquanto acarinhava o seu pescoço—. Deveremos ter mais cuidado com o que fazemos, porque nos espiam. Esta vez, consegui encontrar uma explicação de por que creram ver uma vassoura voar à noite e por que a tua pele muda de cor. Portanto, tu também, meu amigo, deves ter mais cuidado.
— Miau —disse o gato com os olhos cerrados, enquanto ronronava feliz no colo da sua ama, alheio à importância da cor da sua pele, muito atento àquelas carícias de que tanto gostava.
© Frantz Ferentz, 2010