segunda-feira, agosto 27, 2012

OS RAPAZES DO PÁTIO


A Júlia teve que acompanhar o pai, importante servidor público encarregado de questões da emigração. 

Naquele dia ela levava um lindo vestido de seda com flores pintadas. 

Lindo. 

A Júlia nunca acompanhava o seu pai àquele local estranho onde ele trabalhava, porque diziam que era feio e sujo, mas na altura era sábado e a mamã estava doente, portanto o papá teve que levar consigo a menina. 

Já a avisara que teria que ficar todo o tempo no seu escritório, sem mexer de lá, que não podia sair dali e tinha que se comportar como uma menina boa. 

A garota não conhecia exatamente qual era o trabalho do pai. 
Tinha ouvido dizer que era o diretor da Agência para o Controlo da Imigração. 

Aquilo soava muito importante. 

Aliás, quando as pessoas falavam com ele, com o pai, tratavam-no com muito respeito. 

Além disso, quando ia para o trabalho, o pai vestia um bonito uniforme, com uma gorra que tinha no meio um escudo muito giro. 

A Júlia gostava de ter um pai tão importante. 

E assim, naquele dia, a Júlia ali ficou, no escritório do pai, cheia de tédio. 

O pai apenas lhe deixara umas folhas de papel e uns lápis de cores para a garota fazer desenhos. 

Ele disse que tinha que frequentar uma reunião e que voltaria depois para levá-la a almoçar. 

Que pouco a conhecia o pai. 

E livros, havia qualquer um que lhe interessasse? 

A menina deu uma vista de olhos pelas prateleiras, até a altura onde alcançava a sua vista. 

A perspectiva de estar lá todo o dia começava a enfastiá-la. 

Já não sabia onde olhar e nem tinha vontade de fazer desenhos, como se ele fosse uma menina de cinco anos. 

Já tinha dez! 

Quando era que o seu pai se aperceberia disso? 

E foi então que só lhe faltava um ponto onde fixar a sua atenção: a janela. 

Nem podia imaginar que pelo outro lado se abria um mundo diferente. 

Dúzias de pessoas, quase todas de raça preta, caminhavam pelo pátio a dar voltas, sem rumo, sem qualquer interesse, ao sol. 

A menina percebeu os seus rostos tristes, por vezes famintos. 

Mas logo encontrou algo que atraiu a sua atenção: a poucos metros por baixo da janela vários meninos da sua idade jogavam com uma caixa de cartão. 

Ela não podia ver claramente que tipo de brinquedo era aquele, uma simples caixa de cartão. 

E justo então entrou o pai da Júlia. 


◊ ◊ ◊ 



Viu a filha a olhar pela janela, mas não achou que aquilo fosse uma coisa grave. 

— O que estás a olhar, meu tesouro? 

— As pessoas lá fora... Por que é que eles estão aí, encerradas? Algumas estão muito tristes mesmo.. 

O pai não quis exprimir as coisas desde o ponto de vista de um adulto. 

Ela, a Júlia, era ainda muito pequena para perceber certas coisas, mas se calhar aquela era uma ótima ocasião para lhe explicar as verdades da vida. 

-­- Essas pessoas têm de estar aí porque entraram no nosso país sem permissão... Portanto, ficam a espera de ser devolvidas para o seu país, porque as pessoas não podem viajar para onde quiserem e quando quiserem. Cada pessoa tem o seu país e tem de ficar nele -­ explicou pacientemente o pai. 

— Então, por que é que o avô diz que conhece muitos países de África e Europa? Por que é que ele sim pode viajar e estas pessoas não. 

Demasiado complicado. Bastava uma resposta simples: 

— Porque é assim... 

A menina fixou os seus olhos no pai. 

Não compreendia a lógica de «as coisas são assim por que sim». 

Pelo seu lado, o pai não queria usar os argumentos “políticos”, aqueles que diziam que os imigrantes apenas vinham ao país para roubar o trabalho aos cidadãos do próprio país. 

Por isso, empregou um argumento que ele encontrou que a menina poderia compreender perfeitamente. 

— Olha, filhinha. Os imigrantes são pessoas rudes e ignorantes. Eles não sabem nada. São como os animais. A sério, são como os animais da selva, eles são até mesmo um bocadinho selvagens... 

A Júlia continuou a olhar pela janela. 

Selvagens não pareciam, apenas tristes, muito tristes, mesmo cansados. 

Todos, exceto os meninos ao pé da janela, que continuavam a brincar com a caixa de cartão. 

Até sentiu certa inveja deles, porque ela nunca se divertia tanto. 

O pai pegou numa pasta que tinha vindo a procurar e disse à menina: 

—Volto assim que puder. Porta-te bem, eh? E faz-me um desenho lindo... 

Um desenho lindo. 

Desde quando o papá se interessava pelos desenhos? 

Ele nem mesmo sabia que do que gostava a Júlia realmente era explorar, sim, ela queria tornar-se exploradora, se calhar doutros mundos e descobrir novos planetas. Desenhinhos... 

A garota voltou a olhar pela janela. 

Os risos chegavam até ela muito claramente. 

Abriu a janela e esticou o corpo para tentar ver melhor o que é que faziam aqueles garotos que tanto se divertiam. 

Por baixo da janela do escritório do pai havia uma espécie de plataforma, como um teto, a uma altura de cerca de três metros por cima do solo. 

Foto: Creatividad nivel experto!!A Júlia sentia uma curiosidade imensa por conhecer a causa do divertimento deles, pelo qual saltou até ao teto. 
Desde ali deitada pôde contemplar a cena que se desenvolvia por baixo dela. 

Três rapazes pretos jogavam com uma velha caixa que provavelmente apanharam do lixo da cozinha. 

Atravessaram as paredes da caixa com quatro barras que eram totalmente retas, exceto no meio, onde formavam uma espécie de “V”. 

Encontraram, sabe Deus onde, uma bola de golfe e usavam-na com a caixa. 

De facto tinham construído um matraquilho. 

Era fixe aquele brinquedo. 

A Júlia estava a gostar muito dele, mas não se atrevia nem a respirar para não ser ouvida por ninguém. 

Porém, algo aconteceu que fez com que a menina entrasse na cena, mas não foi propositadamente. 

Num dos movimentos com uma das barras, a bola tomou um impulso imenso, tanto que saiu a voar e alcançou o teto sobre o qual a Júlia contemplava a partida. 

Os meninos seguiram a trajetória da bola por cima das suas cabeças e foi assim que descobriram a presença daquela menina que os contemplava desde cima. 



◊ ◊ ◊ 



A Júlia apanhou a velha bola de golfe e depois lançou-a para eles. 

Os garotos sorriam. 

Tinham uns lindos dentes branquíssimos. 

Um deles perguntou-lhe: 

— Queres jogar conosco? 

A Júlia não respondeu. 

Sabia que não podia baixar sozinha desde aquela altura. 

Mas antes de ela dizer nada, outros dos rapazinhos disse aos camaradas: 

— Então, como vai jogar ela? É uma menina! Não entende de futebol... 

Aquelas palavras chatearam a Júlia. 

— Eu sei tanto de futebol como tu, ou até mais! —protestou ela. 

Mas ficou assim, de joelhos sobre o teto sem saber o que fazer a seguir, porque não se atrevia a descer dali. 

Porém, o primeiro dos garotos percebeu muito bem o que se passava. 

Sem dizer uma palavra, lançou-se para a tubagem que descia pela parede e começou a trepar com uma grande agilidade. 

Em poucos segundos estava ao lado da menina. 

— Ajudo-te a baixar —ofereceu o menino tendendo-lhe a mão. 

A Júlia aceitou o convite, mas antes perguntou-lhe o seu nome. 

— Sarandé. 

— Eu, Júlia. 

O garoto sorriu e a Júlia pôde ver outra vez aqueles dentes branquíssimos. 

A menina cruzou os braços até rodear o peito do menino. 

Quando ele sentiu as mãos dela já a pressionar no seu peito, voltou para a tubagem e desceu em questão de segundos, tanto que a Júlia nem se apercebeu que estavam no chão. 

Os outros dois garotos aproximaram-se deles. 

O Sarandé apresentou-os: 

— Este é o Xicalué e este, o Rufus. 

E novamente grandes sorrisos branquíssimos. 

O Rufus era quem desafiara a Júlia sobre questões de futebol, mas não foram precisas palavras, porque logo já estavam os três meninos e a menina a jogar futebol com o matraquilho. 

O vestido de seda bonito da Júlia ficara tudo sujo, desgastado, como se tivesse vivido ali desde havia semanas. 

Assim até passaria desapercebida para os guardas do recinto. 




◊ ◊ ◊ 




Depois de terem jogado dez minutos, um homem se aproximou dos garotos. 

Era também africano, movia os pés devagar, a arrastá-los. 

Devia medir quase dois metros e tinha os cabelos muito curtos, mas mesmo assim se via que os tinha brancos. 

Tinha também barba, meio branca, meio preta. 

Ficou ao lado da Júlia. 
No seu triste rosto cresceu de repente um sorriso tenro enquanto dizia: 

— Menina linda... 

A Júlia olho para ele, de facto estava um bocadinho assustada. 

— Não tema nada, menina —disse o homem que percebeu o medo na menina—. É que eu tenho uma filha que deve ter a sua mesma idade. 

— Tenho dez anos... 

— Ela também... 

— Chamo-me Júlia. 

— Lindo nome, como você, menina. A minha filha chama-se Samira. 

— E não está aqui consigo? 

— Não, está lá longe, em África. Há já três anos que não a vejo ­—disse cheio de tristeza o homem—, mas como me vão devolver para o meu país, vou vê-la outra vez logo... 

A Júlia notou uma mistura de tristeza e de alegria na voz daquele homem, mas não soube a razão daquilo. 

E sem mais palavras, continuou a sua caminhada arredor daquele pátio onde os imigrantes ilegais estavam encerrados à espera de serem repatriados, devolvidos para o seu país assim que o pai da Júlia recebesse um mandado, mas isso a menina não o sabia. 

Depois disso, a Júlia seguiu a jogar com os seus três novos amigos. 

Nem soube o tempo que lá passou. 

Nunca ia esquecer aquela manhã tão intensa. 

Nem se apercebera que tinha fome. 

Ela não, mas o seu pai sim. 

E precisamente a fome foi o que fez com que fosse descoberta. 



◊ ◊ ◊ 



 Aconteceu que o pai da Júlia foi buscar a filha quando chegou a hora do almoço. 

Pensava levá-la com ele à cantina dos chefes. 

Entrou no seu escritório com um grande sorriso, até já tinha preparado o que ia dizer. 

Seria: «Minha princesa, vamos almoçar», mas dito com um tom jovial, amigável. 

Porém, a frase ficou congelada nos seus lábios quando abriu a porta e viu que a filha não estava no escritório. 

O seu primeiro pensamento foi que a garota fora sequestrada, a janela estava aberta. 

Aqueles criminosos iam pagar caro aquela atrocidade. 

Debruçou-se pela janela. 

E bem logo sentiu as gargalhadas da filha, lá mesmo ao pé do seu escritório. 

Como era possível. 

O diretor da Agência de Controlo da Imigração saiu do seu escritório como um foguete e pelo caminho fez um aceno a dois guardas para o seguirem. 

Em poucos minutos irromperam no pátio. 

Aquela entrada repentina do próprio diretor do centro, acompanhado de dois homens armados, fez com que todas as pessoas que estavam lá na altura se detivessem, também a Júlia, que fitou para o pai. 

A menina percebeu o que se passava. 

O pai caminhava para ela muito depressa. 

Ela disse aos três rapazes: 

— Vão embora! Rápido! 

Os meninos obedeceram. 

A Júlia ainda teve uma ideia: deu pontapé à caixa de cartão convertida em matraquilho e afastou-a dali. 

Sabia que assim os rapazinhos poderiam continuar a jogar quando ela já não estiver. 

E como era de esperar, o pai pegou no braço da filha e arrastou-a fora dali sem dizer uma palavra. 




◊ ◊ ◊ 



Muito demorou o pai da Júlia até que falou com a menina. 

De facto não foi até chegarem a casa, quando o pai começou por contar à mãe doente como a menina desobediente tinha escapado com os emigrantes, que são pessoas perigosas. 

A menina era uma inconsciente. 

Não se apercebia que a sua vida tinha corrido perigo, que lhe podiam ter feito qualquer coisa, porque os imigrantes são gente que rouba e faz mal. 

A Júlia ouvia tudo aquilo e mordia os lábios. 

Não tinha coragem de replicar ao pai, porque o pai era um homem muito grande e lhe impunha respeito. 

Mas ela não acreditava no que ele dizia. 

De facto, depois de dez minutos de estar sentada ao pé da cama ao lado da mãe, sentindo as suas carícias embora estivesse doente, a menina deixou-se guiar pela sua fantasia e recreou um campeonato de matraquilho em caixa de cartão com bolas de golfe. 

Mas a voz do pai, que naquele momento se alçava, trouxe-a de volta para a realidade. 

O pai disse: 

— Á, menina, olha, tens o teu quarto cheio de brinquedos, tens tudo o que qualquer menina pode desejar. O que é que tinham aqueles rapazinhos para tu ir com eles? Diz, porque eu te compro o que quiseres... 

E então a Júlia levantou-se da cama da mãe e diz toda séria ao pai: 

— Imaginação. Podes-me comprar imaginação? 

Lá o pai calou-se e saiu do quarto para ir buscar uma cerveja. 

A Júlia voltou com a mãe, quem voltou a lhe acarinhar a cabeça. 


© Frantz Ferentz, 2012

domingo, agosto 26, 2012

E DE REPENTE MARCHOU A LUZ... DA LÚA


No reino de Lendataria estaban todos desesperados. 

A lúa tiña desaparecido do ceo.
Non se vía nada de noite!
E claro, así era sempre lúa nova, nunca había lúa chea.
Aos lobishomes aledáballes a situación, mais ao resto da xente non.
Por iso, o rei Faragullo III mandou pór un anuncio por todo o reino:
«Búscase mago que saiba devolver a luz á lúa».
E quedou ben contento.
Mais o seu conselleiro Amuletus díxolle:
— Maxestade, ninguén fai nada de balde. Ofrecede unha recompensa.
— Tes razón —recoñeceu o rei.
O monarca mandou engadir:
«Quen o consiga, non perderá a cabeza».
O conselleiro Amuletus tivo que participar outra vez:
— Non, maxestade. Trátase de outorgar unha recompensa a quen dea resolvido o problema.
— Que problema? —preguntou o rei, que de feito era un pouco parvo e pasaba a noite a roncar coma un oso, por iso non se decatara de que a lúa de noite non brillaba.

— O que temos coa lúa...

— Olla, isto xa é aborrecido —respondeu o rei en ton canso—. Escribe ti o que queiras, que es moi espelido.
E así foi, o conselleiro Amuletus fixo un anuncio como Deus manda, onde ofrecía a quen fose capaz de devolver a luz á lúa cen moedas de ouro, tres mil de chocolate, un dicionario máxico galego-xabarileiro (quen sabe o que pode dicir un xabaril no medio da foresta) e unha sela para montar elefantes (tamén moi útil para non caer da cerviz dun elefante, caso se tivese un).
E así, foron chegando magos —porque, quen se non un mago, podía resolver ese problema, xa que antigamente aínda non había astronautas.
O primeiro mago, vestido con túnica roxa e capirote a xogo, dixo chamarse Indalecio e ser, ademais, xeógrafo.

Por iso, explicou que a solución ao problema de non ver a luz da lúa era moi simple:
— Polo visto —comezou a explicar—, aquí non vedes o luar, mais douscentos quilómetros cara ao leste, quizais xa se vexa. Solución, movede o país douscentos quilómetros cara ao leste.
— E iso como se fai? —preguntáronlle.
— Non teño idea —respondeu Indalecio—. Vós quixestes saber como facer para ver o luar, non me falastes nada de mover países.
Botárono de alí aos puntapés.
Despois do Indalecio, chegou un mago envolvido nunha capa preta que o cubría enteiro.
Nin sequera o rostro se lle vía.
Puña medo.

Explicou:
— A receita é moi simple: ponde tres quilos de mazás a ferver ao baño maría. Entrementres, ide debullando outros tres quilos de péxegos e comezade a moer na fariña...
Interrompérono:
— Iso é unha fórmula para recuperar o luar?
— Non, é unha receita para facer torta de mazá...
— Mais nós precisamos un método para acender de novo a lúa!
— Hui, disimulen, pensei que isto era un concurso de pasteleiros, desculpen, desculpen...
E marchou por onde viñera o tipo sinistro, que resultou ser un pasteleiro, mirade por onde.
Mais a xente estaba moi desesperada.
Ían ter unha noite máis sen luar.
Que mágoa...
Bo, como dixen, para os lobishomes non.
Todos foron para a cama.
Moi tristes.
E ao día seguinte, nada de nada, porque xa non houbo ningún outro mago que aparecese por alí.
E outra noite máis, mais, de repente, un home vestido normal, provisto dunha vara con lume nun extremo, alzou a vara cara á lúa e a lúa deixouse ver polo horizonte xa brillando.
Como era posíbel?

Todo o país estaba feliz, organizaron festas por todo o reino.

Bo, todos non estaban contentos, os lobishomes xa non.
E o rei nin se enteirou, porque durmía.
Todos se preguntaron como tería acontecido o milagre.
O home explicoulles que só prendera o luar coa súa vara.
— Entón, ti es un gran mago...

E non lle deixaron explicar nin contar nada, só quixeron agasallalo no palacio real.
E el deixoulles facer.

Total, como ía explicarlles que el non era ningún mago, senón un humilde faroleiro que se decatara de que se apagara a mecha da lúa e por iso quedara sen luar.
O único que el fixera fora estender a vara prendida e acender de novo o luar, como acendía todos os farois da rúa do seu barrio todos os solpores.

Mais iso non o contou, porque ninguén, ben o sabía, llo ía crer por moito que o contase.
A xente, entusiasmada, quería facelo conselleiro de algo, ou, polo menos, xefe de algo importante, porque disque era un mago poderoso.

Mais el non quixo.
Quería vivir tranquilo.

E ademais non era mago.
Simplemente, de mañá, marchou na punta das dedas do palacio real e volveu á súa casa, ao seu barrio, onde seguiu a prender e apagar farois da rúa coa súa vara de prender, mais sempre atento ao luar, se por acaso de novo se apagaba.
E nunca ninguén soubo realmente quen era.
 

© Texto: Frantz Ferentz, 2012
© Ilustración: Enrique Carballeira