Na segunda feira na primeira hora, a professora entrou na sala de aulas de 6ºB com um rapaz –ou rapaza– novo. Tinha o cabelo longo, principalmente por diante, até lhe cobrir os olhos. Vestia roupas folgadas, uns tênis normais e carregava umha mochila onde provavelmente levaba todos os seus livros.
– Rapazes, aqui está Óli. Vem do estrangeiro como aluno de intercâmbio pola vossa companheira Leila. Só ficará umha semana, desde hoje segunda até a sexta, mas há-se alojar na residência escolar, porque os pais da Leila tenhem cão e Óli tem alérgia ao pelo de cão. Espero que vos portedes bem, eh? E nom vos preocupedes, porque fala a nossa língua.
Todos os estudantes fitárom para aquele ou aquela Óli. E é que, o primeiro pensamento que surgiu entre eles foi se Óli era um rapaz ou umha rapariga. Pareceu como se o resto das cousas que tinham interesse para os rapazes daquela turma passassem a um segundo plano. Talvez fosse porque viviam num bairro tranquilo dos arredores dumha grande cidade, onde rara vez acontecia nada de interessante; portanto, ficarem a saber se aquele cativo que acabava de chegar era dum sexo ou do outro tornou-se umha qüestom de máximo interesse para todos os alunos.
Polas suas roupas era impossível afirmar se era rapaz ou rapariga. Pola sua voz, tampouco, porque nem falava, mas a certas idades é mesmo complicado distinguir o sexo pola voz. Ademais, Óli optou por sentar num recanto da sala de aulas à parte, sem parecer querer misturar-se com o resto de companheiros.
De todos os jeitos, nengum deles tinha a coragem de lhe perguntar se era el ou ela. Por isso, durante o primeiro recreio, todos os alunos da turma de 6ºB parárom de jogar os seus jogos tradicionais, já fosse saltar à corda ou dar pontapés à bola, para observarem aquele ou aquela Óli.
Mas Óli passou todo o recreio pendente do seu telemóvel, cousa que nom era para nada estranha, pois muitos deles também passavam o tempo a jogarem com aquele aparelho. Nesse sentido, Óli nom era umha exceçom.
Assim decorreu o primeiro dia de aulas sem os rapazes da escola darem sabido qual era o sexo de Óli. Houvêrom esperar até o segundo, quando a Sara, numha assembleia quase clandestina no ginásio da escola com o resto dos seus colegas de aulas, dixo:
– Há umha maneira de sabermos qual é o sexo de Óli sem nos complicarmos a vida.
– E qual é?
– Basta com vigiá-lo e saber se entra no banho dos rapazes ou das rapazas.
Aquela proposta da Sara pareceu bem a todos. Acordárom fazer pequenos grupos de vigia que nom perderiam de vista os movimentos de Óli durante o tempo que passasse na escola naquela manhã. Devia ficar ali quatro horas, de maneira que era mui provável que passasse, tarde ou cedo, polo banho.
Desse modo, durante o segundo dia, todos os rapazes da turma de 6ºB nom fizêrom outro que vigiar os movimentos de Óli quanto às necessidades fisiológicas. Em grupinhos, tentando passarem desapercebidos, fôrom vigiando os movimentos de Óli para ver se ia ao banho.
Mas nom foi.
Nom pisou o banho em toda a manhã. É que nom tinha necessidade de fazer pis como toda a gente?
E assim chegárom ao terceiro dia. Antes de as aulas começarem, houvo umha nova assembleia dos estudantes. O mistério da identidade sexual de Óli aumentava. Naquela altura foi o Nel que propôso provarem outra estratégia:
– Durante o recreio, os rapazes jogamos futebol e as raparigas saltades a corda. E dous de nós, por exemplo, a Maria e o Lois, dim-lhe que jogue com os rapazes ou com as rapazas. Veramos o que escolhe. Se jogar futebol, é rapaz; se jogar a saltar, é rapariga.
– Eu nom concordo com isso –protestou a Carla–. Eu gosto de jogar futebol e sou rapariga!
Aí já se montou umha discussom, onde até o Pedro ia reconhecer que ele adorava saltar a corda.
– O de saltar a corda –dixo– é desporte igual que dar couces à bola.
– Nom digas parvadas –retrucárom-lhe.
– Tu nom viche como treinam os boxeadores?
Aí já ninguém dixo nada, porque os boxeadores eram tipos duros que saltavam a corda para treinarem.
Ao cabo conseguírom pôr-se de acordo. Já durante o recreio, os rapazes começárom umha partida de futebol, mas com a Carla, e as raparigas um festival de saltos da corda, com o Pedro, que preferia mil vezes saltar ali do que correr trás a bola e levar pontapés nos geolhos ou nas canelas.
Tal como estava planeado, a Maria achegou-se primeiro de Óli, quem nom parava de bater com os dedos na pantalha do seu telemóvel.
– Olá –saudou a Maria.
– Olá –devolveu o cumprimento Óli erguendo a vista do telemóvel.
– Ia-che perguntar se queres saltar a corda connosco.
E justo daquela chegou o Lois e dixo:
– De certo preferes jogar umha boa partida de futebol, nom sim?
Óli fitou para ambos os rapazes, como se estivesse a pensar em qual das duas possibilidades escolher. Os outros dous rapazes olhavam atentamente, como esperando umha resposta que fosse mudar o destino do planeta.
Cabo duns segundos, que até parecêrom horas, Óli dixo:
– Nom gosto nem de bater na bola com o pé, nem de saltar por cima dumha corda. Do que gosto muito é...
Aí os dous rapazes quedárom de boca aberta.
– Do que gosto muito –prosseguiu– é de debuxar mapas estelares. Fago-o aqui no telemóvel. Há umha aplicaçom bem boa para isto...
Ambos os rapazes tivêrom o mesmo pensamento:
«E isso é próprio de rapazes ou de raparigas?»
Mas aí já Óli deixou de atender para eles e continuou a traçar linhas sobre a pantalha do seu telemóvel, mentres ainda dizia:
– Constelaçom do Cavalo...
Foi um novo fracasso. Porém, quanto pior iam as cousas nesse sentido, mais interesse tinham os rapazes da turma de 6ºB por saberem qual era o sexo de Óli. Aquilo já estava a se tornar umha qüestom de honra para aquele grupo de rapazes e raparigas daquela pequena escola dum bairro pequeno e esquecido dumha grande urbe, onde quase nunca acontecia nada.
E assim chegárom ao quarto dia, que começou, como nom podia ser doutro jeito, com umha nova assembleia dos estudantes no ginásio antes do início das aulas.
Naquele dia, foi a Belém que propôso:
– Eu botaria um caldeiro de água por riba dele. Dessa maneira teria que mudar de roupa. Podemos ter roupa seca preparada, tomá-la da que se deixa no quarto de objetos perdidos e que há séculos que ninguém reclama. Escolheríamos roupa de rapaz e de rapariga.
– E como fás para lhe botar um caldeiro de água em riba sem que pareça que o fás de propósito? –perguntou alguém.
Essa era umha boa pergunta. Tinha que parecer um acidente.
– Fagamos umha guerra de balões de água justo antes de a campaínha soar –propôso o Henrique–. Podemos conseguir que três balões batam em Óli.
A todos pareceu umha boa ideia. Rapidamente fôrom comprar balões à loja da esquina e enchêrom-nos com água. Ficárom no pátio à espera de Óli. Quando apareceu pola cancela, fingírom que iniciavam a guerra, mas dissimulárom mal e pouco, porque imediatamente mais dumha dúzia de balões cheios de água fôrom bater diretamente contra Óli.
XAAAAAAAAAFFFFFFFFFF!
Óli ficou mais que ensopado. Parecia que o anticiclom dos Açores acabava de descarregar-lhe em riba e de golpe.
– Pobre!
– Que desgraça!
– Hui, quanta água!
– Molhache, eh?
Todos eram comentários para tentar ocultar um plano malévolo dos rapazes da turma. A seguir pusêrom em marcha a segunda parte do seu plano:
– Oi, há roupa seca aqui no quarto dos objetos perdidos, Óli. Vem e escolhe o que queiras.
Quase que toda a turma empurrou Óli até o quarto em qüestom, sem deixarem mesmo tempo para Óli protestar, porque o levavam como umha escolta de gorilas acompanha um cantor na moda para evitar ser incomodado polos seus fãs.
E umha vez na sala, a roupa estava perfeitamente separada em roupa masculina e feminina.
– Escolhe –dixêrom-lhe.
Óli olhou para toda aquela roupa, tanto para a masculina canto para a feminina. Era feia demais. Nom gostava nada do que ali via.
– Sabedes quê? –perguntou de repente Óli–, que nom me fai falta nada disso. Na mochila levo roupa demais. Sempre a levo, para acidentes imprevistos. E a minha mochila é impermeável. Importa-vos saírdes mentres mudo a roupa?
Todos quedárom boquiabertos. Ninguém esperava algo assim. Já era o quarto plano que fracassava. Afinal, saírom da sala todos e deixárom que Óli mudasse a roupa tranquilamente.
E assim chegárom à sexta feira, o derradeiro dia que Oli estaria na escola. Como já vinha sendo habitual, houvo umha assembleia dos estudantes da turma para discutirem sobre a qüestom que tanto interesse despertava neles.
– É que nom há maneira de saber qual é o sexo de Óli?
– Parece que nom.
– É um rapaz... ou rapaza... tão estranho. Nunca tal vim.
– Nem eu...
– Nem eu...
– Nom será hermafrodita?
– Hermafrodita? E isso que é?
– É como as lombrigas, que tenhem os dous sexos. Eu lim sobre isso na internet...
– Eu penso que nom, que ou é rapaz ou é rapariga, mas nom há maneira de sabê-lo...
E entom alguém lançou a pergunta mais inteligente do dia:
– E se lho perguntamos?
– Perguntar?
– Sim, perguntar-lhe se é rapaz ou rapariga. Com o seu nome é impossível de saber.
Aí produziu-se um momento de silêncio sepulcral no ginásio da escola. A qüestom que roldava a cabeça de todos eles e elas era: «e quem tem coragem para perguntar a Óli qual é o seu sexo?»
– Fagamos um sorteio. A quem lhe tocar, há-lhe fazer a pergunta.
Aí estivêrom todos e todas de acordo. O sorteio consistiu em escolherem cadanseu pedacinho de papel, havia tantos como estudantes, mas só um tinha umha marca. Quem escolher aquele papel teria que perguntar a Óli polo seu sexo.
E tocou à Irene, quem virou toda vermelha pola vergonha que lhe causava tal tarefa.
– Podes fazê-lo quando esteia para marchar, ao final das aulas –dixo-lhe o Félix, quem estava apaixonado por ela desde o primeiro día que a conhecera, seis anos atrás–. E olha, se quiseres, pergunto-lhe eu por ti.
– Nom –respondeu a Irene–. Chega-me com que esteias ao meu lado quando tenha de perguntar...
Aquela resposta soou ao Félix como música celestial.
E foi assim como decorreu aquela sexta feira sem contratempos, até que chegou o final das aulas. Nom parecia que houvesse cerimónia nengumha, que o passo de Óli por ali ia passar inadvertido, porque nengum professor apareceu para despedir aquele estudante de intercâmbio. Por isso, já Óli ia marchar, mas os companheiros dixêrom-lhe:
– Óli, espera, queremos perguntar-che algo.
Óli detevo-se na porta. O Félix colocou-se ao carom da Irene e até a bateu suavemente com o côvado nas costelas dela.
– Oi, Oli –começou a Irene com todos os seus companheiros a lhe fazerem um semicírculo– e tu que vens sendo, rapaz ou rapariga?
Por fim lançara a pergunta!
A reaçom de Oli foi de rir. Sim, riu com aquela pergunta que lhe pareceu tão divertida. Depois, começou a falar:
– Com que era isso o que vos vinha inquietando toda a semana, nom sim? Bem, já que o perguntades, eu sou...
CATAPLUMMMM
Justo nesse momento esboroou um andaime de obras que havia fora da escola. O seu estrondo ao cair silenciara as últimas palavras de Óli.
– Passei-no bem aqui convosco –dixo antes de marchar–, mas para a próxima vez, perguntade no princípio, nom no final.
E Oli foi embora, deixando os rapazes de 6ºB, mais umha vez, de boca aberta.
Frantz Ferentz, 2015