quinta-feira, março 06, 2008

A planta dos livros [+10 anos].- XFC


 
    O João deixou aquele livro acima da mesinha-de-cabeceira.
    O João apenas lera umas páginas, mas estava sempre tão cansado quando eram horas de ir dormir que nem tinha forças para apanhar o livro. Bastava-lhe passar os olhos por quatro linhas e já adormecia como um menino.
    E roncava.
  Roncava como um urso em hibernação até que o despertador soava na outra manhã.
    E assim, aquele livro ficou dias, semanas, meses acima da mesinha-de-cabeceira sem que já o João nem o abrisse.
    Esquecera-o de tudo, como se fosse parte da mesinha.
    Mas foi durante a primavera que as coisas mudaram.
    E não foi porque o João de repente quisesse ler novamente o livro.
    Não. Foi por uma outra razão.
    E é que ao livro começaram a brotar raízes, como se for uma planta.
    Eram umas raízes muito pequeninas no início. Apenas ultrapassavam a primeira tabela da mesa.
    Aliás, alimentava-se das gotas de água que cada noite caíam na mesa-de-cabeceira quando o João pousava o seu copo depois de beber nele.
    E foi assim que, sem o João se dar conta, o livro foi-se transformando numa planta semelhante a um gerânio.
    Felizmente, a planta crescia e crescia aos poucos.
    Até que um bom dia, a planta começou a ter ramos e dos ramos deveriam ter surgido folhas.
    Mas não foi assim.
    O que realmente surgiram foram novos livros.
    No início eram muito pequeninos. Eram seguramente livros bebê.
    O João, como chegava tão cansado todos os dias, nem se inteirara. Ele só bebia o seu copo de água todas as noites e as gotas que caíam na mesa alimentavam a planta. O coitado do João estava tão costumado a ver já aquela planta, que mesmo pensava que ele mesmo a colocara lá acima da mesa.
    Mas afinal um dia a Raquel, a irmã do João foi visitar o seu irmão.
    Entrou no quarto dele e descobriu aquela planta que em vez de folhas tinha livros.
    Não sabia o que era mas abriu um dos livros sem arrancá-lo.
    E começou a ler nele.
    – Á, João, é gira esta planta que dá livros. Aliás, este que estou a ler é muito interessante.
    Como já podem imaginar, o João nem fazia idéia de que lhe estava a falar a sua irmã.
    – Estás maluca?
    – Não. Olha cá.
    Ela mostrou-lhe aquele livro e também os outros que penduravam da planta.
    O João, que naquela altura não estava tão cansado, abriu outro livro e gostou. Aliás, como eram muito pequenos, liam-se muito bem.
    – Presta –reconheceu o João.
    O João estava tão contente com a sua planta que logo contou a todos os seus amigos.
    Aliás, quando um livro estava maduro, caía da planta e logo começava a se formar outro.
    O João começou a oferecer livros a todos os seus amigos.
    As histórias dos livros eram giras.
    Aos poucos, todo o bairro tinha livros do João. Mas ele gostava nomeadamente de um pequenino que falava da história de um cão que queria apreender a língua dos gatos, mas quando queria praticá-la com eles, os felinos saíam às carreiras. Coitadinho o cão...
    E o João estava decidido a ler aquele livro até ao final, por isso meteu-o na sua pasta para poder lê-lo quando viajava de autocarro ao trabalho.
    Mas a alegria do João, dos seus amigos e dos vizinhos, durou pouco.
    A notícia da árvore que dava livros chegou aos ouvidos das autoridades.
    Numa segunda-feira apareceram na casa do João uns agentes fiscais da Câmara Municipal para lhe perguntar se tinha licença municipal para ter aquela planta exótica.
    O João, pronto, não tinha nada, só o bilhete de compra do livro, mas isso não servia.
    Os agentes fiscais da Câmara iam levar a mesa-de-cabeceira para a Câmara quando, de repente, entraram uns agentes da SDPDDAQSON, que quer dizer: Sociedade De Protecção Dos Direitos De Autor Que São     Os Nossos.
    – Você tem direitos de autor de todos os livros que produz esta planta?
    – Não... –respondeu o João todo coitado.
    – Então terá que pagar uma multa de vários milhões de euros...
    – Mas eu só tenho trezentos euros, uma colecção de colheres de café e um MP3.
    – Então confiscamos a planta –disseram os agentes da SDPDDAQSON
    Mas também os agentes fiscais da Câmara estavam lá para confiscar a planta.
    Por isso discutiram entre eles para ver quem tinha mais direito de ficar com a planta.
    Entre gritos, levaram a mesa-de-cabeceira fora da casa do João.
    Mas a planta, tão cedo como ficou fora, secou.
    Os vizinhos olhavam cheios de medo aquela cena.
    Ao verem a planta morta acima da mesa-de-cabeceira, os agentes fiscais da Câmara Municipal foram embora pela direita, enquanto os agentes da SDPDDAQSON foram embora pela esquerda.
    Ao João caiu-lhe uma lágrima de tristeza.
    Recolheu a sua mesa-de-cabeceira levou-a para o seu quarto.
    Retirou a planta morta.
    E uns dias depois, lembrou que ainda conservava aquele livro do cão que queria falar a língua dos gatos...
    Mas estava sempre tão cansado...
    E deixou o livro acima da mesa-de-cabeceira...
    Até que, depois de uma semanas, sem o João se dar conta, aquele livrinho também começou a estirar as suas raízes pela mesa.


© Xavier Frías Conde, 2008.
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