sexta-feira, dezembro 18, 2009

O João Carapão procura inspiração [+6 anos].- XFC


O João Carapão olha pela janela.

Chove muito lá fora.

Chove imenso, tanto que as ruas semelham pequenos rios.

O João Carapão olha toda aquela chuva a cair sem parar.

Escuta as pingas caírem e fazerem “xoof-xoof”.

Mas ele não está triste porque chove.

Ele está triste porque perdeu a inspiração.

É terrível.

O João Carapão é compositor musical. Ele tem feito obras muito bonitas para orquestras.

Quando as pessoas soam as peças do João Carapão, os instrumentos vão harmoniosos, não soam como um conjunto de tolos a fazer ruído.

Mas assim eram as coisas antes.

Agora não.

Mesmo umas lágrimas caem pelo rosto do autor.

Começa a pensar que, se calhar, tem que abandonar a sua grande paixão: a música. Então lembra que, em criança, gostava da cozinha.

Bom, talvez é o momento de mudar de profissão.

Vai à cozinha e começa a preparar pratos. Apanha um livro de receitas e segue as instruções da omelete de cogumelos.

Bate os ovos, esmiúça os cogumelos, bota salsa aos punhados, confunde o sal com o açúcar, verte pimentão... Mas finalmente logra fazer a omelete...

Apanha o garfo e o garfo e começa a comer.

Puagh, que nojo de omelete!!

Tem um sabor terrível. Além disso, é possível que os cogumelos sejam venenosos, porque o João Carapão começa a sentir pruridos por todo o corpo e a sua face cobre-se de manchinhas vermelhas.

O doutor, quando o atende, diz-lhe que é uma intoxicação. Com efeito, os cogumelos eram venenosos, mas felizmente apenas um bocadinho venenosos.

Coitado o João Carapão. Tem que passar vários dias na cama.

Mas o pior é que ainda não descobriu qual é a sua verdadeira vocação.

Quando já se recupera da sua doença, decide experimentar com a pintura.

Na rua, segue a chover. Tantos dias a chover sem parar são terríveis, a gente perde a vontade de sair e o trânsito torna-se terrível.

Montado numa lancha de borracha, vai à loja e compra tudo o necessário para começar a cobrir uma tela de cores. Apanha o pincel e começa a bater para um lado e para outro, misturando tons e cores como um maluquinho.

Ele é feliz assim.

Mas quando acaba a sua obra, dá-se conta de que, além da tela, a metade do quarto está coberto também de pintura, pelo chão, pelos móveis, pelas paredes...

É um autêntico desastre.

Finalmente compreende que a pintura também não é o seu talento.

Mas ele segue determinado a experimentar mais coisas.

Fora, segue a chover com fúria, as ruas já são grandes rios.

Então começa escutar as gotas que caem no seu próprio quarto. Como vive numa casa humilde, a água da chuva escoa-se facilmente, mas com tanta chuva provavelmente até a casa de mais luxo teria acabado cheia de goteiras.

O João Carapão percebe que as gotas, ao caírem, têm ritmo.

Tem uma ideia. Coloca pratos, copos, garrafas e até uma frigideira no chão para as gotas caírem nos recipientes.

Mas não o faz para a água não molhar o chão. Na realidade, cada recipiente produz um som diferente quando a gota bate nele. De fato, após poucos minutos, as gotas, ao caírem, produzem uma percussão muito interessante.

O João Carapão fica contente. Aqueles sons já têm cadência, ritmo, são o início de uma composição.

Apanha o seu caderno, o lápis e começa a anotar o que ouve.


Para as pessoas normais, aquilo seria apenas uma coisa um bocadinho desagradável: são gotas a cair desordenadamente. Mas para o João Carapão soam muito harmoniosas.

Mas então o seu lápis perde a ponta. Procura outro em casa, mas não encontra nada.

Tem que apanhar outra vez a lancha de borracha e navegar até à loja para comprar outro lápis. É-lhe melhor comprar três para assim poder escrever mais sem se preocupar disso.

Quando volta, descobre que as gotas acabaram.

De fato está a parar de chover.

O João Carapão não está muito contente.

A sua composição ainda não está pronta. Como é que vai fazer?

Faltava-lhe tão pouco para ter toda a inspiração...

Finalmente sai o sol timidamente.

As nuvens vão-se retirando devagarzinho.

Os primeiros raios do sol começam a aquecer-lhe o rosto através do vidro da janela de sua casa.

O João Carapão olha para o seu caderno. Está cheio de notas que fazem todo o fundo de percussão de uma nova sinfonia, mas falta-lhe algo ainda.

Fica um bocadinho triste.

A inspiração, onde é que ela está?

Quando uns minutos depois tudo começa a voltar para a normalidade, os pássaros tornam a sair.

Pousam nos telhados, nas estátuas, nas árvores e até nalgum chapéu imenso de alguma senhora muito elegante que parece que leva um parque acima da cabeça.

De repente, os pássaros começam a cantar, já espalhados por toda a cidade.

É um grande prazer ouvi-los.

Talvez outro compositor poderia encontrar no cantos dos pássaros uma fonte de inspiração.

De fato o João Carapão tem colegas que passam o dia a ouvir os pássaros cantar nos parques públicos e nas lojas de animais de estimação, sempre com um caderno na mão, a tomarem notas dos sons produzidos por eles.

Mas o João Carapão descobre outra coisa.

Descobre os pássaros pousados nos fios da luz, a tomar o sol.

É uma fila muito comprida de cabos da luz que atravessam a sua rua, de um extremo para o outro.

São cinco fios paralelos.

Os pássaros pousam neles como querem.

Mas o João Carapão percebe que eles formam uma composição: os fios são o pentagrama e os pássaros são as notas.

Ele copia no seu caderno o que vê, traduzindo-o para a linguagem musical: dó, dó, mi, fá, ré...

E quando chega ao final da rua, é dizer, ao final da fila onde estão os pássaros, o João Carapão dá-se conta de que ainda lhe falta um bocadinho para acabar a sua composição.

Então tem uma ideia.

Põe-se a aplaudir desde a janela para os pássaros se espantarem.

Consegue-o. Os pássaros saem voando assustados, coitadinhos.

Mas após uns minutos, voltam a pousar nos cabos da luz.

E formam outra composição.

O João Carapão põe-se a copiar novamente.

E agora sim, agora já tem toda a composição.

E com o caderno completo, cheio de signos musicais, pentagramas, notas e até nódoas de molho de tomate, senta perante o piano e começa a soar.

Sai-lhe uma verdadeira sinfonia.

Soa muito bem. Agora o João Carapão fica contente, finalmente conseguiu criar uma nova peça e tem a certeza que terá muito sucesso.

E como lembrança das suas origens, põe-lhe um título bem estranho, mesmo misterioso: Sinfonia das gotas de pássaro... 

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