domingo, setembro 05, 2010

Há vida além da televisão? [+12 anos] .- Xafrico



[1]



    Dom Feliciano, professor de ensino elementar após quarenta anos, estava para se reformar.
    Dom Feliciano tinha tido estudantes de todos os géneros ao longo da sua comprida carreira, bons e maus, inteligentes e estúpidos, generosos e avaros...
    Mas Dom Feliciano nunca, absolutamente nunca, tinha tido dois estudantes como a Valéria e o Filipe.
    Não é que fossem rapazes ruins, nem tivessem ideias perigosas.
    Não, simplesmente eram rapazes cuja vida corria entre a casa e a escola.
    Não conheciam mais nada.
    Era uma vida com uns conhecimentos muito fracos, porque quase todas as coisas que sabiam foram apreendidas na televisão.
    Dom Feliciano estava muito preocupado por eles.
    Antes de ele se reformar, gostaria que aqueles dois estudantes, que aliás eram irmãos, tivessem alguma experiência real, alguma experiência que não viesse da televisão.
    A sua preocupação começou quando leu os exames deles.
    A pergunta era muito simples, qualquer rapaz normal teria sabido responder, mas eles não.
    Pergunta: Donde procede o leite que consumimos nas casas?
    Resposta do Filipe: Do cartão.
    Resposta da Valéria: Do supermercado.
    Todos os colegas da turma sabiam que o leite procede das vacas, mas eles não.
    Mesmo nem sabiam o que era uma vaca, ou pelo menos tinham uma ideia um bocadinho estranha do que era aquele animal.
    - Eu vi uma vaca, dom Feliciano -disse a Valéria-. Era de plástico, com a superfície branca e com pintas pretas. Mesmo montei nela na feira. Era gira!
    A Valéria referia-se a uma vaca de um carrossel em que tinha montado.
    Porém, o Filipe tinha uma outra experiência do que era uma vaca:
    - Á, pá, eu sim que sei o que é uma vaca. Nos meus álbuns de banda desenhada há uma vaca que é um super-herói. Sempre bate os malandros com os seus turbo-cornos, mas ela sempre leva um antiface e ninguém lhe conhece a verdadeira personalidade.
    Dom Feliciano estava desesperado com aqueles dois.
    Por isso, convenceu os pais da Valéria e do Filipe para os deixarem frequentar uma excursão escolar.
    Tratava-se de uma excursão a uma fazenda-escola.
    Seria apenas um dia.
    A mãe chorava toda cheia de preocupação.
    - E se fossem atacados por tigres ou baleias, professor? -dizia ela entre soluços
    - Minha senhora, não há nada disso -respondia o velho mestre todo cheio de paciência, mas já começava a compreender que o problema dos meninos se remontava pelo menos a uma geração acima.
    Finalmente, a Valéria e o Filipe partiram com os seus colegas para a excursão à fazenda-escola.



[2]


    Dom Feliciano acompanhou os seus estudantes naquela excursão à fazenda-escola.
    Sabia que seria a última excursão que faria antes de se reformar.
    Ele já precisava descansar um bocadinho, coitado mestre.
    Porém, ele estava muito preocupado pelos dois irmãos.
    Como reagiriam no campo? Embora parecesse incrível, aqueles dois rapazes não sabiam realmente o que era o campo.
    Quando desceram do autocarro, foram recebidos por uma monitora muito simpática, a Sandra.
    Ela começou a falar como uma locomotora, sem deixar mesmo que os rapazes lhe fizessem qualquer pergunta.
    Começou a guiá-los pelas instalações, a mostrar-lhes tudo o que lá havia, a começar pelos animais.
    - Á professor, a minha mãe tem razão -disse de repente o Albertinho-, estão a dar muita porcaria às galinhas ultimamente para comer. Olhe como é grande esta e que ovos ela põe...
    - Albertinho, és um ignorante -renhiu o mestre-. Isso não é uma galinha gigante, é um avestruz e os ovos que pões sãos os seus, os normais.
    O Albertinho ficou calado porque todos os seus companheiros riam.
    Dom Feliciano comprovou que nem só a Valéria e o Filipe desconheciam a natureza.
    A Sandra continuou com o seu passeio até chegarem ao local onde estavam os cavalos.
    - Estes, meus amiguinhos, são cavalos -disse ela com um sorriso enorme enquanto acenava para os animais-. Gostam deles?
    Cinco cavalos moviam-se lentamente dentro do valado.
    - Á, senhorita -quis saber na altura a Joana-, e leões, tem leões aqui?
    A Sandra riu.
    - Não, não temos leões. São muito perigosos. Eles até comem as pessoas.
    - Mas então têm tigres, não é? -insistiu a Joana.
    - Também não, são muito perigosos.
    - Mas eu vi lá um... Era pequenino, mas era um tigre.
    A Sandra não percebia.
    Então viram aparecer trás uma esquina um velho gato com riscos alaranjados que mal tinha vontade de caminhar. Por isso deitou-se à sombra duma árvore.
    - Isso não é um tigre -explicou a Sandra, que já começava ela também a se espantar da ignorância daqueles rapazes-. É o Lucas, o gato da fazenda. É muito velho, mas é inofensivo...
    - Aáááá -foi a resposta unânime de todos os estudantes.
    - Meninos, depois vamos ordenhar as vacas, mas antes vamos à horta para verem as plantas que lá temos.
    A turma foi para o horto.
    Que emoção.
    Nunca viram os frutos nas plantas.
    A Vergília grito de repente:
    - Senhorita, estas cenouras foram enforcadas por essa planta malandra!
    A Sandra virou-se.
    O que a Vergília via eram umas cenouras a pendurar da planta.
    - Não, menina. É aí que nascem as cenouras, da planta.
    - Eu pensava que as cenouras nasciam nas caixas! -exclamou a Vergília.
    Dom Feliciano sentia-se muito deprimido.
    Aquilo era muito pior do que ele pensava.
    A Sandra não sabia se escrever um livro de anedotas com aqueles garotos ou se fingir que havia um ataque bacteriológico e mandar evacuar a fazenda.
    - Então, os morangos também nascem duma planta?
    - Pois é...
    - E os feijões?
    - Pois é...
    - Mas então, esta planta tem que ser muito má, porque quer que a batata fique lá enterrada. É muito cruel -disse depois a Vergília.
    - Á, mas as batatas não são essas coisas amarelas que flutuam no azeite que vêm sempre com os hambúrgueres? -perguntou na altura o Zé, que tinha face de ter feito a descoberta mais importante depois da roda.
    A Sandra começou a comer as unhas.
    Estava desesperada.
    Dom Feliciano contava os dias que lhe restavam para se reformar, mas ainda tinha que acabar aquele dia.



[3]



    Depois do almoço chegou o momento mais importante do dia.
    Tocava ordenhar as vacas.
    Primeiro, os rapazes viram um vídeo onde se explicava como se fazia aquela atividade.
    Nenhum deles sabia o que eram os ubres.
    Era uma coisa esquisita.
    A Manuela perguntou:
    - E então, porque as vacas não levam sutiã? Tem que ser muito cansativo andar assim com as tetas a pendurar, não é?
    A Sandra sentiu que uma lágrima tentava sair.
    Depois do vídeo, conduziu a turma até a corte.
    Lá havia meia dúzia de vacas.
    Um dos trabalhadores da fazenda começou a ordenhar uma vaca.
    Todos os rapazes olhavam para aquela atividade com muito interesse.
    E então começou a sair o leite.
    - Pare, pare, pare!! -gritou o Filipe ao homem que ordenhava a vaca.
    - O que se passa? -perguntou ele assustado.
    - Não vê que está a lhe causar muito sofrimento à vaca? Está a lhe produzir sangue, embora seja sangue branco.
    - Isso não é sangue, é leite! -explicou a Sandra-. Não interrompam mais e observem.
    A Sandra, na altura, decidiu que não ia permitir que os rapazes ordenhassem qualquer vaca.
    Seriam capazes de lhes extrair mesmo os cornos.

   
 * * *


    Tudo nesta vida tem um final.
    Não sabemos se o final desta história é feliz ou não, mas o pesadelo para a Sandra e para Dom Feliciano também acabou.
    Ela teve que ir ao médico e pedir uma licença por ataque de nervos.
    Ele conseguiu adiantar a sua reforma pelo seu estado de desesperação.
    Porém, antes de se despedir dos seus estudantes, ainda lhes fez um exame.
    Uma das perguntas foi: O que é uma vaca?
    A resposta da Valéria foi: É uma coisa grande que faz "muu" e que serve para matar moscas porque tem um rabo muito grande.
    A resposta do Filipe foi: É uma fábrica de leite com quatro patas, dois cornos de viking e quatro tetas.
    É que não o acreditam?

© Xavier Frías Conde
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1 comentário:

Boieiro disse...

Esses stában cumo l garotico que preguntou:
- Á pai! qual ye la árbol que dá balancigas?!

Abraço
A.M.

PS: essa de l "antiface" ye fantástica