sexta-feira, março 29, 2013

AS TRÊS CEREJAS


Muitos anos atrás, quando todas as viagens se faziam por terra ou por água, um camponês novo chamado Daisuke teve que deixar o seu país e a sua família, porque ele se tinha recusado a servir como soldado para o imperador. Ele morava numa cidade pequena desde onde se pode ver o Monte Fuji, a montanha sagrada do Japão.

Antes da partida, com lágrimas nos olhos, a sua avó, uma cega idosa com mais de 90 anos, disse-lhe:

─ Querido neto, lembra-te sempre donde vens. Tu és o nosso semente. Nunca te esqueças das flores de cerejeira que podem ser vistas desde as nossas janelas na primavera. Por esta razão, só posso dar-te algo miúdo para a tua viagem. Se hás de fazer um bom uso deste dom, filhote, caso contrário não vais ser ninguém, porque terás esquecido a nossa terra.

A avó deu ao seu sobrinho um pequeno pacote que o Daisuke não abriu até ficar sozinho. O pacote continha quase nada, apenas uma simples caixa, feita de papel, em que foram colocadas três cerejas, todas vermelhas, lindas, deliciosas. O rapaz sabia que sua avó era uma mulher sábia, e que esses três cerejas tinha algum significado. Ele embolsou o pacote e começou a caminhar em direção ao sul de Quioto. Como ele era um desertor, pois as suas crenças impediam-lhe odiar e atacar outro ser humano, a viagem foi muito cautelosa para não ser descoberto pelos soldados. Foi um caminho complicado, obrigando-o a se esconder durante o dia em poças de lama, e caminhar no escuro da noite. O pouco de comida que tinha trazido de casa esgotou logo, forçando-o a se alimentar de frutas que encontrava no campo ao longo do caminho, ou a recolher lixo que outras pessoas atiraram pelos caminhos.

Todas noites pensava o rapaz nas cerejeiras ao pé do Monte Fuji e lembrava a voz da sua avó a contar histórias, com aquela voz doce que o tinha acompanhado durante toda a sua infância, a mesma voz que lhe tinha falado no dia de partida.

─ Tu és o meu único neto vivo ─disse a velha numa noite estrelada─. O imperador levou-me todos os outros. Eu não quero perder-te também. Corre, corre, corre embora, eu prefiro que estejas muito longe, mas vivo, do que morto e enterrado aqui em casa.

E foi assim que Daisuke decidiu partir.

Quando ele chegou a Quioto, disfarçou-se de mulher, era a única maneira de não ser detido pela rua. O exército não recruta mulheres, pois considera-as seres inferiores úteis apenas para cuidar dos assuntos domésticos. Com essa estratégia, Daisuke foi capaz de embarcar num navio que navegava para o leste, para um novo país que estava a surgir. O último dinheiro que tinha trazido de casa usou-o para pagar o bilhete. Na longa viagem que durou mais de um mês, sempre viu o pôr do sol refletido no mar. E ele sempre se lembrava das cerejeiras ao pé do Monte Fuji, mas com o passar dos dias afastava-se ainda mais delas. Porém, cumpriu a promessa feita à sua avó de manter essa imagem no seu coração e não se esquecia donde é que ele vinha. Finalmente chegou a outro continente, a outro país. A cidade onde ele caiu chamava-se San Francisco e era muito grande. Felizmente, não era lá o único japonês, nem mesmo o único asiático que lá havia. Na verdade, ele viu pessoas de todas as raças, mas uma em particular era totalmente desconhecida para ele, tratava-se de homens e mulheres com a pele castanha e o cabelo tudo cheio de caracois.

Desde então, e sabendo que era livre da tirania do Imperador, Daisuke voltou a se vestir como um homem, mas não sabia para onde ir ou o que fazer. Ele não conhecia o idioma do novo país, mas não passou muito tempo antes que ele começasse a aprendê-lo. Visto que aquele era um país de oportunidades, logo encontrou um emprego na construção do caminho-de-ferro. Esse trabalho permitiu-lhe ir para o leste, atravessando o imenso país. Trabalhou sem descanso durante muitos meses como um escravo, ganhando pouco, mas no final, estava feliz de ver todos os dias o pôr do sol no horizonte, e lembrava-se das cerejeiras no pé do Monte Fuji. 

Até àquele dia.

Naquele dia, por acaso, viu o Monte Fuji no meio de uma planície, na Arizona, no meio do deserto. A montanha surgia orgulhosa, muito longe. O Daisuke então decidiu abandonar o trabalho escravo e ir para o norte em direção à visão do Monte Fuji. Assim foi que, à noite, enquanto todos dormiam no campo, o Daisuke foi embora caminhando na ponta dos pés, enquanto os coiotes passavam uivando muito próximo a ele. Tal era o desejo de alcançar a montanha que o seu próprio medo se apegou a ele como uma sombra.

Calculou que a montanha, tão parecida com o Monte Fuji, ainda tinha que ficar a três ou quatro dias de distância. Não tinha água, portanto como poderia chegar até aquela montanha sem água? E se por acaso chegava lá, o que faria depois? Dizem que aqueles que entram no deserto sem água e sem comida, como ele, acabam morrendo. Mas o Daisuke não parecia se importar, só queria aproximar-se daquela montanha e assim ela própria deu-lhe a força para seguir para em frente.

E no segundo dia, sob o sol abrasador e sem água, o Daisuke desmaiou-se. A mente do Daisuke voou para além do horizonte, do mar e chegou às planícies ao pé do Monte Fuji, onde as cerejeiras já tinham florescido para cobrir todo o ar de pétalas. Pensou que estava para ir para o outro mundo, para se reencontrar com os seus irmãos, que morreram servindo ao imperador. Em vez disso, quando abriu os olhos, viu o rosto de uma mulher bonita, com a pele de cor de cobre e negros cabelos longos. Era uma jovem índia, que lhe tinha salvado a vida. Ela tinha-o encontrado quase morto, tinha-o trazido para o acampamento dela com a ajuda de alguns guerreiros e tinha-o curado.

Infelizmente, não conseguiam entender-se, porque ela nem sequer falava inglês. Uma vez recuperado, o rapaz quis ir embora para continuar a sua viagem em direção à montanha. No momento de se despedir dela, o Daisuke levou a mão ao bolso e pegou no pacote que sempre o acompanhava. Abriu-o e tirou uma das cerejas. Tinham-se mantido frescas como no primeiro dia, como quando a sua avó lhas tinha dado. Era a sua maneira de agradecer-lhe que lhe tivesse salvado a vida. Ela, a jovem índia nunca tinha visto uma cereja, mas gostou da sua cor vermelha escura e comeu-a com prazer, fechando os olhos. O Daisuke pensou que era a melhor maneira de usar uma daquelas cerejas que a sua avó lhe tinha dado para a viagem.

A jovem índia disse-lhe:

─ Mara. 

Esse era o seu nome. E uma lágrima desceu pelo seu rosto bonito enquanto ela contemplava a partida do Daisuke.

Dois dias depois, o jovem japonês chegava ao pé da montanha. A forma era, sim, como a do Monte Fuji, mas todo ele estava deserto. Havia apenas pedras e serpentes. Porém, algo dentro dele disse ao Daisuke que aquele era o lugar onde o destino o tinha guiado. Mas o que é que ele ia fazer, lá sozinho?

Começou a construir uma pequena cabana, mas não tinha ferramentas, apenas uma faca grande. Depois de uma semana, tinha preparado um espaço para viver lá. Felizmente encontrou pertinho uma arroio que nascia na montanha. Havia pelo menos um bocadinho de água e mais nada.

Todos as tardes contemplava o pôr do sol. Ele sabia que o sol, depois que abandonava aquele local, corria para o Japão. Quando para ele chegava a noite, na sua aldeia amanhecia. O sol era o seu único contato com a sua a terra natal. Sentia-se triste, apenas na companhia dos coiotes, que eram os únicos seres vivos que moravam perto dele.

De repente, uma manhã, justo depois de se levantar, viu uma figura a caminhar entre ele e o sol. Parecia o “espírito da manhã”, ou talvez fosse algum antepassado. A figura ficou irreconhecível durante alguns minutos, até que o sol esteve muito por cima do horizonte. Então o Daisuke reconheceu a Mara. Ela tinha abandonado os seus e tinha seguido o chamado do seu coração.

O Daisuke sentia-se muito feliz. Ele abraçou-a. Logo, ele ofereceu-lhe outra cereja. Ela pegou nela e comeu-a com muito prazer, fechando os olhos e sentindo o seu gosto perfumado invadir todos os seus sentidos. A Mara esperou por ele para comer a última. Ele também o teria feito com prazer, mas em vez de comê-la, o Daisuke pegou na mão da Mara e juntos afastaram-se uma centena de metros da cabana. Não muito longe do arroio, enterraram a cereja.

Na primavera seguinte, um pequeno broto de cereja deixou-se ver. O Daisuke e a Mara olharam para ele como se fosse mesmo um filho deles. O Daisuke pensou que dentro de algumas primaveras aquele vale seria como o planície que se estende aos pés do Monte Fuji, com as cerejeiras a florescer. Finalmente tinha sido capaz de usar adequadamente as três cerejas que sua avó lhe tinha dado. Na verdade, toda a sua história, a sua vida, tinha vindo com ele, e assim a sua estirpe continuaria a viver a milhares de quilômetros de distância donde tinha nascido.

Mas não me perguntem onde é que fica este vale, ou o que aconteceu com o Daisuke. Ainda hoje um pouco de vida do Japão mora no deserto do Arizona e, a cada primavera, o céu fica cheio de nuvens de pétalas de flores de cerejeira.

© Frantz Ferentz

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